Graduado em Medicina pela Universidade de São Paulo, o pediatra José Martins Filho possui uma ligação muito forte com a história da Unicamp. Professor Titular da Faculdade de Ciências Médicas, exerceu várias funções administrativas na Universidade, inclusive sendo eleito Reitor pela comunidade em 1994. Coordenador do Departamento de Pediatria e do Programa de Residência em Pediatria, coordenador da Comissão de implantação do Hospital das Clínicas, presidente do Conselho de Administração do Hospital das Clínicas da Unicamp, representante da Coordenação Geral do Programa de Moradia Estudantil da Unicamp, diretor da Faculdade de Ciências Médicas, vice-reitor e Reitor foram alguns dos cargos exercidos pelo professor.
Em seu depoimento, lembra do início difícil da Universidade e da Faculdade de Medicina e do trabalho duro exercido por inúmeros profissionais, para colocá-las no nível de excelência em que se encontram hoje.
"A história da Faculdade de Medicina da Universidade é muito gostosa de ser lembrada"
Comecei a fazer Puericultura dentro do Ambulatório de Medicina Preventiva, porque a Pediatria ainda não tinha acabado e nós não tínhamos ainda formado a primeira turma de alunos. Quando cheguei , a primeira turma estava no quinto ano. Fui por esta época um híbrido de Preventivista e Pediatra. Então, o diretor da Faculdade de Medicina era o saudoso Doutor Antônio Augusto de Almeida, também o primeiro diretor da Faculdade da Medicina. Trabalhávamos na Santa Casa, era um prédio bastante acanhado, nossas instalações eram muito modestas, mas já se vivia por lá o sonho de uma grande Faculdade de Medicina. Era uma constância a preocupação com o atendimento adequado e com o ensino de qualidade. Fiquei muito pouco tempo nessa situação, passei imediatamente para a Pediatria que era minha vocação. Em 1969, já era assistente do Departamento de Pediatria. Lembro-me que no ano em que cheguei aconteceu uma coisa muito interessante: nós fizemos a Comissão Paritária, que era um grupo de professores, alunos e funcionários que resolveram sentar para discutir a Universidade, a Faculdade de Medicina. O Zeferino Vaz estava começando a organizar a Universidade, estavam aparecendo os primeiros Institutos na Unicamp, entre 1968 e 1969. Assim foi minha chegada na Universidade já discutindo um pouco o que era a Universidade, com os professores, os alunos e os funcionários.
Foi uma época muito interessante, de muito pioneirismo, nós éramos muito jovens. Ainda estava começando minha carreira de Pediatra e a convite do professor Pinotti, que era o diretor da Faculdade de Medicina, assumi a chefia do Departamento de Pediatria onde fiquei 12 anos na direção. A maioria dos docentes que hoje brilham no Departamento de Pediatria eram estudantes na época. Graças a Deus, o Departamento de Pediatria cresceu muito. Foi uma fase de pioneirismo, nós estávamos desenvolvendo as primeiras especialidades, a nossa residência estava começando a se organizar, o internato em Pediatria estava começando a ser estabelecido. Na Santa Casa, tínhamos três grandes áreas: o Ambulatório, o Berçário e a Enfermaria de Pediatria. Começamos a trabalhar em Paulínia, num centro de saúde, que era um convênio que o Departamento de Medicina Preventiva e a Pediatria mantinham com a Prefeitura de Paulínia, onde nós tínhamos um convênio internacional, com apoio da Organização Mundial da Saúde, onde nossos estudantes, e residentes faziam estágio pioneiro junto à comunidade. Esse foi o começo do Departamento de Pediatria. Fui o primeiro Doutor do Departamento de Pediatria, em 1972. Na Medicina, pouquíssimas teses de doutorado antes da minha, como a do professor Pinotti. Foi a primeira tese de doutorado do Departamento, depois veio a professora Silvia Brandalise. E hoje o Departamento de Pediatria virou essa pujança, com pós-graduação, com uma residência respeitada no Brasil inteiro. Orgulho-me muito dessa fase inicial de sua implantação. Éramos todos generalistas, fazíamos clínica pediátrica geral, as especialidades pediátricas estavam aparecendo em um momento de muita improvisação, nós tínhamos uma enfermaria precária , nós tínhamos drenagem no teto, fazíamos campanha para conseguir melhorar as condições físicas de funcionamento. Fizemos um famoso mezanino na Santa Casa, em que professor Zeferino Vaz, ia lá e brincava comigo que eu tinha feito um mezanino muito baixinho, mas é que é correspondente minha estatura. Formamos gente muito importante para a Pediatria brasileira. Acho que hoje nós temos mais de 400 ex-residentes já saídos do Departamento de Pediatria. Basicamente eram alguns docentes mais antigos, no começo do Departamento de Pediatria eram cinco, seis docentes no máximo e depois foi a expansão.
Era uma época, em que nós todos tínhamos que fazer de tudo, tínhamos que coordenar os programas de residência. Também fui coordenador da pós-graduação em Pediatria, fui o primeiro coordenador do mestrado e Doutorado em Pediatria. Éramos chefes de Departamento, outros colegas eram coordenadores de Ambulatório, outros de berçário e a residência nós ajudamos no começo. Lembro-me muito de um trabalho conjunto. Havia uma época na Faculdade de Medicina e no Departamento de Pediatria que a diferença de idade entre professor, o residente e o aluno era mínima. As idades eram próximas, era todo mundo recém formado vindo da USP, da Escola Paulista de Medicina. A implantação visava uma residência com visão social, nós tínhamos uma preocupação muito grande com a comunidade, com a atenção em posto de saúde, com o trabalho, com o município de Paulínia e obviamente com a formação do pediatra em todos os pontos. Os plantões eram muito puxados, trabalhávamos 24 horas, todos nós dávamos plantões continuamente e quando fui chefe do Departamento nessa época do começo da Comissão de Residência tinha uma coisa marcante que até hoje os ex-alunos e os ex-professores quando encontram comigo comentam. Criei uma reunião chamada ‘Encontro com o chefe’. Ás 7 da manhã, todo mundo sentava no Paulistão, que era uma sala grande que tinha na Santa Casa e a gente começava às 7 horas relatando às últimas 24 horas do Departamento. Das 7 às 8 e meia da manhã a gente recordava tudo que tinha acontecido no dia anterior e isso marcou muito. Tinha muita gente que chorava, eu às vezes ficava com pena dos residentes e levava flores no dia seguinte, porque tinha os apertado muito. Lembro de uma residente que é uma pessoa muito importante na Universidade, que fui tão firme com ela durante essa reunião que ela chorou e todo mundo ficou em silêncio, eu não sabia o que dizer. Não tive outra coisa, senão sair da reunião, comprei uma dúzia de rosas e entreguei publicamente para ela e pedi desculpas dizendo: Você é uma ótima médica. Até hoje ela lembra disso. É uma professora muito querida aqui na Universidade.
Essa foi uma história maravilhosa, fico muito feliz de ter participado dela. (refere-se a sua participação na Comissão de Implantação do novo Hospital das Clínicas da Unicamp). Lembro-me que na hora do almoço, que era o tempo que tínhamos, o professor Almeida, mais tarde o professor Pinotti, nos chamava para conversar com os engenheiros, que tinham o escritório no centro da cidade de Campinas. Lembro-me dos desenhos que a gente fazia em cima da perna - Olha, eu queria um Departamento de Pediatria que tivesse um jardim no meio, que tivesse um banheiro especial - Lembro-me que estávamos construindo, o desenho, a planta do HC e quando descobri que a Enfermaria de Pediatria ia ser no 4º andar, fiquei desesperado. Mas como é que vai por um jardim no quarto andar? E está lá o jardim no quarto andar. Foi uma idéia nossa, queríamos um lugar onde as crianças pudessem brincar. Essa comissão trabalhou muito, várias pessoas participaram . Era um sonho nosso. Nós, hoje, depois de quase 40 anos, quando vamos para o Campus e vemos a Majestade desse hospital e a importância social dele para as pessoas que o usam, percebemos que foi um sonho que se realizou. Tínhamos reuniões semanais, era uma época em que a Universidade estava crescendo muito. A construção desse hospital demandou um trabalho muito intenso de dentro da reitoria, na época da reitoria do professor Pinotti particularmente. Tinha sido Diretor Associado do professor Pinotti, às duas vezes que ele foi diretor da Faculdade e acompanhei de perto a mudança da Santa Casa. Fui diretor da Faculdade depois disso mas ainda estava participando das discussões da Comissão de Implantação do novo Hospital.
Fui diretor da Faculdade de 1988 a 1990 e Diretor Associado quando o professor Pinotti ainda era diretor. Aliás, fui um dos primeiros diretores associados da Unicamp. O professor Pinotti me convidou para ser o vice-diretor dele, o diretor associado e nessa época fiquei mais com as questões do Ensino de graduação e também nessa fase de construção e vinda para cá, quando trabalhávamos ainda na Santa Casa. Fizemos uma parceria muito boa. Foi uma época em que nós trabalhamos muito em conjunto. O professor Pinotti era o chefe da Obstetrícia e eu, o chefe da Pediatria. Era uma dupla materno-infantil que dirigia a Faculdade de Medicina e foi muito interessante. Ampliamos a Santa Casa, criamos os ambulatórios, se reformulou muito, investimos bastante, construímos coisas dentro da Santa Casa, reformulou-se os anfiteatros, a Pediatria passou por uma reforma, o berçário foi arranjado lá em cima na descida da famosa rampa da Santa Casa, quando a gente vinha dos Irmãos Penteado. Foi uma época também muito importante para a Universidade. Foi quando a Unicamp deu uma grande expandida, foi quando vários institutos foram criados, quando começamos a ter uma dimensão grande. Naquela época a Faculdade de Medicina ainda tinha uma conotação assistencialista e de ensino. Ainda não éramos essa potência de pesquisa que somos agora. Estávamos começando as primeiras teses de doutorado. Não tínhamos pós-graduação oficialmente, os doutorados ainda eram feitos a moda antiga.
Virei Diretor da Faculdade de Medicina em 1988. Já tínhamos mudado para o Campus, a grande maioria da Faculdade de Medicina já estava aqui. Trabalhávamos no prédio de Clínica Médica e sucedi ao professor Frederico Magalhães. Acho que um dos trabalhos mais importantes da minha época como Diretor da Faculdade de Medicina, foi a implantação de várias comissões de discussão ampla com os professores, alunos e funcionários, foi quando nós mudamos as reuniões da Congregação e passamos a fazer no Paulistão. Foi quando começamos os primeiros trabalhos de uma Congregação mais participativa, mais ampliada. Peguei uma greve muito grande na minha época como diretor da Faculdade – a famosa greve de 88, uma greve que durou uns dois meses – foi uma situação importante, mais saímos bem. Ampliou-se a Faculdade de Medicina, começamos a implantação da pós-graduação, algumas pessoas foram contratadas, a Faculdade começou a se desenvolver mais integralmente nesse período. Ajudei a consolidar a vinda da Santa Casa para cá que foi começada pelo professor Frederico de Magalhães.
Fui presidente da Comissão de Moradia (Programa de Moradia Estudantil da Unicamp) e teve uma outra coisa na minha história que tem a ver com a minha vida na Universidade. Fui o primeiro representante docente no Conselho Universitário. O Conselho Universitário chamava-se ainda Conselho Diretor, fui eleito por todos os professores da Universidade para ser o representante dos docentes. Fiquei lá quase quatro anos e enfrentei grandes paradas, na época que a Universidade lutava bastante. E por acaso representando a Medicina , o que parece paradoxal, porque a Medicina não tinha o maior número de docentes, mas, eu tinha uma ligação com o pessoal da Adunicamp e acabei sendo esse representante docente. Aliás, o começo da minha visibilidade com o resto da Universidade vem dessa época do Conselho. Eu era vice-reitor da Universidade e me deram a incumbência de presidir a Comissão de Moradia Estudantil, o que era uma coisa difícil de fazer, até hoje tenho histórias pitorescas que aconteceram lá e marcaram minha vida, como entrar na moradia para diminuir problemas entre pessoas, ajudar os estudantes a se acalmarem. Foi uma experiência muito boa, porque nós conseguimos junto ao DCE da Unicamp administrar a moradia durante quatro anos, compatibilizando o interesse dos estudantes, o interesse da Universidade, a utilização democrática das casas, permitindo que as pessoas realmente mais carentes, mais necessitadas pudessem ter a moradia. Foi uma experiência de vida muito interessante que também teve um papel importante na minha eleição para reitor depois, porque os estudantes do DCE , o pessoal da moradia acabou convivendo muito comigo nessa época e me deu também um contato muito bom com a “estudantada” toda. Foi um trabalho muito bom, muito prazeroso e fundamental, porque muitos estudantes que vinham para a Unicamp se não tivessem moradia, teriam dificuldades para estudar.
A minha vida na reitoria da Universidade tem uma história longa. Fui quatro anos vice-reitor, fui coordenador geral da Universidade e depois virei reitor eleito pela comunidade. O que mais me orgulho da minha época de reitoria foi toda a mudança no enfoque do ensino de graduação, um aumento dos cursos noturnos, ampliação das Faculdades, foi uma luta muito grande. Por outro lado também foi a expansão do Campus. Toda a área nova da Medicina, a partir do Hospital até a entrada da PUC foi feita na nossa gestão. Lembro-me de andar nesse mato com o meu assessor de imprensa, conversando com o prefeito do Campus como faríamos para desafogar a entrada da Unicamp. Havia um projeto antigo que era muito difícil porque era muito inclinada essa estrada e em parceria com a prefeitura de Campinas, com o falecido prefeito Magalhães Teixeira, realizamos toda essa utilização do Campus da Universidade, da área da Saúde. Urbanizamos os prédios novos onde estão localizados o CIPED e o Gabriel Porto (CEPRE). Além disso, as ampliações de várias bibliotecas do campus. Começamos um projeto meu - três reitores da época - da USP, da Unicamp e da Unesp chamado infra-estrutura Fapesp – Infra 1, 2, 3 e 4 que permitiu um investimento muito grande em laboratórios de pesquisa no Campus da Universidade em uma fase que nós passávamos por um momento difícil. Uma coisa que me lembro muito bem, nos primeiros meses da minha gestão como reitor, foi a vinda do Plano Real. Era uma época em que era muito difícil de controlar essa verba , porque trabalhávamos em um regime de hiperinflação e de repente assumi uma Universidade com um documento restrito, com tudo controlado, assim mesmo conseguimos manter o poder aquisitivo dos professores e dos funcionários. Tive uma gratificação muito grande nos anos em que fui reitor da Universidade, pelo contato que tive com toda a massa de professores e particularmente dos funcionários. Tive uma equipe de funcionários que me ajudou muito. Criamos várias entidades de assistência dos funcionários. Acho que terminamos o nosso projeto de reitoria de uma maneira muito gratificante, porque me orgulho de andar hoje pelo Campus, quase oito anos depois de ter saído da reitoria e tenho milhares de amigos. Em todo lugar que vou da Universidade é um sorriso, uma mão estendida, um abraço, alguém que lembra de mim como um amigo, não como um ex-reitor. Sou uma pessoa que gosta de andar na Unicamp, gosta de estar com as pessoas, gosta de abraçar os funcionários, os professores e os alunos.
A história da Faculdade de Medicina da Universidade é muito gostosa de ser lembrada. Lembro-me, logo que cheguei aqui, das dificuldades para se chegar no Campus da Universidade. A primeira estrada que ligava o Campus, no começo havia muita resistência, o pessoal tinha medo de vir de Maternidade de Campinas aqui para o Campus porque diziam que atolava. Uma vez atolou um ônibus de estudantes e todo mundo teve que descer e empurrar. O campus ainda estava sendo desbravado, a avenida de entrada ainda era um canavial.
Lembro de outra história quando eu era conselheiro do antigo diretor da Universidade e essa história aparece em um livro recentemente lançado. Como todo sujeito muito jovem, muito afoito e muito falador, eu era muito participativo e me lembro de um célebre Conselho Universitário que tive uma discussão muito grande com vários professores. E eu como representante dos docentes, estava defendendo um dos docentes que estava para sair da Universidade e a situação chegou a tal ponto que o professor Zeferino teve que interromper o Conselho Universitário para apaziguar os ânimos e acalmar.
Outras histórias que aparecem e são sensacionais são as histórias dos pacientes da Santa Casa. As mães não tinham onde dormir do lado das crianças na Santa Casa e teve uma criança que estava sendo tratada e perguntei se ela gostaria de alguma coisa. Respondeu que gostaria que a mãe tivesse um lugar para ficar junto dela. Porque a mãe dormia em tapetinho no chão, não tínhamos como abrigar essa mãe. Hoje em dia temos alojamentos conjuntos com os pais, eles ficam junto conosco.
A mensagem é de esperança, de fé, de alegria, de olhar para trás e ver a trajetória de uma instituição de nos orgulhamos de pertencer. Hoje a Unicamp é um logotipo internacional, a Medicina da Unicamp é uma instituição muito respeitada e percebo que isso foi construído graças a muitas pessoas. A mensagem que deixo é que as pessoas não devem esmorecer. Por mais dificuldades que apareçam temos condições de saltar adiante e continuar em uma trajetória ascendente, em respeito profundo a importância de uma Universidade Pública, que seguramente presta um trabalho fabuloso, formidável para a comunidade, forma pessoas, forma médicos competentes, produz conhecimento novo. Devemos acreditar que é possível construir uma sociedade mais justa, menos egoísta, mais tolerante, que aceite as pessoas e evidentemente marcar na história a nossa passagem, que é muito breve, mas que seguramente deve fazer com que nossos filhos se lembrem de nós com muito orgulho. Muito boa sorte para a Unicamp!
Entrevista concedida a Eduardo Vella