O professor Ernesto José D’ottaviano é um indivíduo emocionado. Por tudo que fez nos 32 anos de trabalho na Universidade Estadual de Campinas considera-se um privilegiado. Foi um dos fundadores do Departamento de Fisiologia da FCM, coordenador do Instituto de Biologia e do Instituto de Fisiologia e Biofísica, ocupando diversos cargos administrativos no IB. Ajudou a implantar o curso de Enfermagem e de Educação Física na Universidade e por diversas vezes coordenou a Comissão Permanente de Vestibulares, a Convest. Aposentou-se em 1996, mas não perdeu o vínculo com a Universidade. Continua participando como professor convidado na pós-graduação e como membro da banca em diversos concursos. O professor Ernesto por todos os anos de dedicação e pela participação na criação de vários setores, tem a Unicamp como filha. Em troca, recebe o respeito e a admiração da Universidade, como de uma filha para um pai.
"A Unicamp é minha filha mais velha"
Em 1º de abril de 1964 o professor Carlos Eduardo Negreiros de Paiva, que era oriundo da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto, foi contratado pelo então reitor, o professor Dr. Mário Degni para instalar o Departamento de Fisiologia. Nós fomos apresentados por amigos comuns e ele me convidou para ser assistente do Departamento que ia se instalando, em um estágio probatório de dois anos, para ver na verdade se eu ‘dava prá coisa’. Ele acabou se surpreendendo e eu acabei ficando 32 anos na Unicamp. Participei do início da criação da Faculdade de Ciências Médicas. Nós começamos no segundo andar na Maternidade de Campinas, ali na Avenida Orozimbo Maia, sentado em duas caixas de cerveja vazias fazendo lista de equipamentos para montar o Departamento de Fisiologia e Biofísica. Eu aprendi como fazia. Aquilo foi muito útil, pois me permitiu fazer igual na Faculdade de Medicina da PUC, que criei também. Foi uma boa vivência: inicialmente com 46-48 alunos. Apesar das dificuldades, de dar aula com canequinha, no começo, enquanto o material importado não chegava, usávamos material emprestado da Medicina de Ribeirão Preto, que vinha em um carro para cá,em um dia e voltava para lá no dia seguinte. Eu fui aprendendo como organizar um Departamento, como montar uma aula – médico não tem didática na sua grade curricular- eu era um nefro-urologista, eu fazia rim, bexiga, próstata. E começamos, já que era exigência da CPRTI, o trabalho de doutorado. Naquele tempo, não tinha curso de pós –graduação como hoje e tampouco mestrado - você fazia o doutorado direto e trabalhando, dando aula de dia, de tarde e de noite, tinha que fazer em paralelo. E como o professor Negreiros, nosso chefe, trabalhava na área de reprodução- eu fui fazer o doutorado diante de nossas possibilidades, uma investigação com as nossas gestantes indigentes da Santa Casa. Fazíamos um estudo ao longo da gravidez – terceiro, sexto e nono mês - ou melhor colocando, primeiro, segundo e terceiro trimestre da evolução daquelas mulheres quanto as condições de anemia, eletrolitos no plasma, infecções. E esse doutorado acabou saindo em 69. Foi o terceiro doutorado feito na Medicina da Unicamp. Graças a esses e outros contatos na área de reprodução, me inscrevi para fazer um pós-doc e saí do Brasil por dois anos – fui viver inclusive, no meio de dois Prêmios Nobel na Argentina, tive a chance de conviver com os pais da Fisiologia Uterina no Uruguai e ajudar a testar o primeiro DIU – esse dispositivo intra-uterino de cobre que foi desenvolvido no Chile em úteros de coelha. Eu andei com “gente grande”. Fui um privilegiado.
Em meu retorno fiz o concurso para livre-docência e aí sim, foi a primeira livre docência do Instituto de Biologia. Aí começamos uma carreira muito mais administrativa no Unicamp. Nós começamos em dois e o Departamento a essa altura já tinha seis assistentes. Aí, eu fui ajudar a reorganizar a parte básica da FOP (Faculdade de Odontologia de Piracicaba) que tinha um grande Departamento de Microbiologia, o chefe era o Dr. Plínio que depois foi reitor, sucedendo o Zeferino e Fisiologia, Fármaco e Bioquímica era tudo uma coisa só. Então eu dividi, cada um passou a ter um responsável, como é o clássico e a partir daí o Dr. Walter Hadler largou na minha mão praticamente toda a parte burocrática do Instituto. Comissão de horário, Comissão de transferência, revalidação de diploma de estrangeiro, eu coordenava tudo. Eu fiquei doze anos montando o horário da Faculdade de Biologia. Mais adiante, me colocou como coordenador do curso de Biologia. Fiquei no cargo até depois que assumiu o sucessor dele, o professor Pavan. Nesse ínterim fui, chefe do Departamento, membro do Conselho Departamental, participei da criação do curso de Biologia, foi quando a Faculdade de Medicina foi dividida. O básico ficou como Instituto de Biologia e de Genética Médica e para cima ,ficou como FCM na Santa Casa, embora a Farmacologia e a Genética tenham funcionado muito tempo na própria Biologia, aqui nos primeiros prédios construídos no novo campus. Depois na Biologia, já na gestão do Reitor Pinotti, fizemos a Enfermagem com o Dr. Cieto, e depois fizemos ainda, à pedido do Pinotti, a Educação Física com o Tojal. Começou então a febre das pós-graduações. Instalamos a primeira pós-graduação em Fisiologia, o mestrado – eu, Celso Ramalho e o Armando Freitas da Rocha. Depois desse curso de mestrado, nós participamos de várias comissões – uma delas acabou redundando na criação da Convest (Comissão Permanente para os Vestibulares). Fui um dos coordenadores da Convest com o Jocimar Scarparo desde o início e mesmo depois que saiu, permaneci ,até 2001, quando se separou da Fuvest. Coordenei vestibular, fui em Juiz de Fora, em Belo Horizonte, fui ao Rio de Janeiro, fui em Rio Preto e no fim fiquei quietinho aqui em Jundiaí.
Até que em 92, depois de ser de novo chefe, não sei quantas bancas, eu queria me aposentar. Mas a Unicamp para mim sempre foi uma cachaça. É minha filha mais velha. A minha filha mais velha é de 65 e nós começamos aqui em 64.
Então eu estive no exterior de novo duas ou três vezes, mas sempre ligado a Unicamp, embora a partir de 76 a pedido do então reitor da PUC, Benedito Barreto Fonseca, fomos instalar o Campus II da PUC. Eu e mais onze professores da Unicamp. Eu queria sair em 92, mas o Martins, foi a reitor e puxou o Hermógenes Freitas Leitão e não me deixaram sair. Fui parar na PRPG- onde fiquei dois anos e três meses.
Fomos para o PRPG e nesse tempo havia um grande intercâmbio com a Capes, Finep, Fapesp em torno de se conseguir o maior número possível de bolsas e ampliar os cursos de pós-graduação em várias áreas, inclusive no Instituto de Biologia. Então a Fisiologia já tinha doutorado, tinha lugar que não tinha e foi implantado, criaram-se algumas áreas novas. Já sobre a gestão do Arício Linhares, que estava nos Estados Unidos, e o professor Bosquero, que era o vice-diretor estava como diretor e precisou fazer uma ponte de safena de urgência. Então, eu acabei acumulando, por ser o mais velho, o decano, a diretoria da Biologia por trinta e dois dias por falecimento do Hermógenes. Eu era pró-reitor e diretor ao mesmo tempo.
Nessas comemorações de 40 anos eu tenho vindo todas as horas, exposição de fotografia, almoço, estou no meio da meninada. Não perdi o cordão umbilical com a Unicamp. Mesmo de 96 para cá, depois da minha aposentadoria, continuo colaborando como professor convidado da pós, tanto aqui como em Piracicaba e participando de inúmeros concursos. Só esse ano já participei de quatro.
Outro grande prazer que tive na vida foi formar gente. Tirando três ou quatro mais velhos que tem na Fisiologia o restante dos professores foram todos meus alunos. Ou de graduação ou de pós. Hoje tanto aqui na Fisiologia ou em outros Departamentos, seja da área básica ou na Medicina, tive papel de responsável a induzir o ex-aluno a virar um docente.
Eu podia contar para você duas passagens do professor Zeferino e seus assessores. Uma em 1976. Toda tarde, ele comia umas frutas. Pediu que a menina da copa que o servisse e ela disse que não tinha mais frutas. “Como, se eu mandei comprar ?”, perguntou o Zeferino.
O professor Paulo Romeu e o Doutor Pércio que era o procurador da Universidade comeram.
Ele mandou chamar o pessoal da manutenção e pela primeira vez na minha vida, eu vi, pôr um cadeado em uma geladeira. Quando eles foram lá no dia seguinte, deram com a geladeira fechada, nunca mais roubaram as frutas do “homem”.
E a outra histórica dele foi no ano de 78, comigo, pouco antes dele sair. Eu era candidato a fazer adjunto e o Paulo Romeu e o Pérsio seguraram o processo, porque naquele tempo pelo estatuto velho da USP, quem ficasse adjunto ficava vitalício. Adjunto e titular eram vitalícios. Eram três anos de interstício e eu já tinha cinco. E o Pérsio sumiu com o processo. Eu fui lá uma vez ‘pe’ da vida, ele me recebeu, eu contei a história e ele mandou chamar o Pérsio. Ele falou: Pérsio você não é o procurador da Universidade?
O Pérsio respondeu: Sou.
Então o Zeferino disse: Então procura o processo do professor.
O Professor Zeferino tinha sacadas históricas e bem humoradas.
Eu tenho uma grande satisfação do 40º aniversário da fundação Faculdade de Ciências Médicas, pois a considero como filha primogênita. Tendo participado desde a primeira turma e sido professor, praticamente de forma ininterrupta de mais de trinta turmas. Dediquei grande parte da minha vida a isso aqui, então quando se fala da FCM, do HC, do CAISM, foi algo que eu pus a mão, que ajudei, que colaborei, que formei gente. Então me dá uma enorme satisfação e me considero um privilegiado de ter formado, como formei na Unicamp, mais de 3000 médicos, entre 64 e 96, que passaram pela Fisiologia.
Entrevista concedida a Eduardo Vella