O geneticista Bernardo Beiguelman foi fundador do Departamento de Genética Médica da Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Estadual de Campinas. É Professor Doutor pela Universidade de São Paulo, Livre Docente de Genética da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto e Professor Titular do Departamento de Genética Médica da Unicamp, onde também obteve título de Professor Adjunto. Fundou o primeiro Ambulatório de Genética Clínica do Brasil, em 1969, na FCM.
Aposentado desde 1997 pela Unicamp, mantém vínculo não remunerado no curso de Pós-Graduação em Genética do Instituto de Biologia da Universidade. Tem publicados 428 trabalhos científicos entre livros, teses, capítulos de livros, publicações em revistas com seleção editorial e comunicações científicas em congressos nacionais e internacionais. Na Unicamp foi homenageado com uma placa de Prata na Faculdade de Ciências Médicas da Unicamp em sessão solene da Congregação, como reconhecimento à sua dedicação integral à docência e à pesquisa em 1982 e em 1988, durante a inauguração de placa de bronze com o seu nome no Hospital das Clínicas, em comemoração aos 25 anos do Departamento de Genética Médica, por ele iniciado.
Quando cheguei à Unicamp não havia nada. Começamos do marco zero
Vim para a Unicamp em agosto de 1963, há pouco mais de 40 anos, para o primeiro e que continua sendo o único, Departamento de Genética Médica do Brasil. Infelizmente o exemplo dado pela Universidade de Campinas, que naquela época era Universidade Estadual de Campinas, UEC, não foi seguido.
Quando cheguei à Unicamp não havia nada. Começamos do marco zero. A Universidade Estadual de Campinas, tinha alugado dois andares ou parte deles da atual Maternidade de Campinas, que estava em construção na Avenida Orozimbo Maia, para poder instalar os cinqüenta estudantes que estavam no primeiro ano e tinham acabado de ingressar na recém nascida Faculdade de Ciências Médicas. Primeiro formou-se o Departamento de Histologia, com a direção do Professor Hadler, e logo em seguida, vim eu para a Genética Médica e o professor João Batista Parolari para o Departamento e Anatomia. Tudo era improvisado. Imagine o que era um prédio em construção e eu tendo que instalar um Laboratório de cultura de tecidos, com toda a precariedade, sem ar condicionado, sem câmera de sucção, que nem existia disponível naqueles tempos. Embora com todas essas dificuldades, conseguimos instalar um Laboratório de cultura de tecidos no segundo andar dessa maternidade e começar a desenvolver uma série de pesquisas que estávamos fazendo sobre Genética e Epidemiologia de lepra, que agora chama-se hanseníase.
Nessa ocasião (Implantação do Departamento de Genética Médica em 1963), conseguimos o grande apoio do professor Antônio Augusto Almeida que era o Diretor da Faculdade de Ciências Médicas (Diretor da FCM, de 1963 a 1969) e do primeiro Reitor da Unicamp, o Professor Cantídio Moura Campos (Gestão de 16.1.1963 a 23.8.1963). Existia uma resistência muito grande do Governo Estadual, em obter verbas para o desenvolvimento da Faculdade de Ciências Médicas e para a própria Universidade. A Universidade Estadual de Campinas foi criada em um Decreto Estadual nº 7655 pelo Governador Carlos Alberto Carvalho Pinto. Acontece que depois da criação da Universidade Estadual de Campinas, mudou o governo e o grupo de Carvalho Pinto perdeu a eleição. Quem ganhou as eleições foi o Governador Adhemar Pereira de Barros e como existia um conflito eterno entre os Janistas, o Grupo de Jânio Quadros, a qual pertencia Carvalho Pinto e os Adhemaristas, por uma política errada, Adhemar achava que não deveria ajudar o desenvolvimento da Universidade, porque ele estaria ajudando o projeto de um governo anterior, ao qual ele não era evidentemente simpático. Com isso X não tínhamos recursos, e para poder avançar o serviço, usamos como saída recrutar os estudantes para trabalhar em pesquisa. Desde o primeiro ano, vários se engajaram na pesquisa e depois se tornaram grandes nomes da ciência brasileira. Um deles, Walter Pinto Júnior é conhecido nacional e internacionalmente como um dos expoentes da Genética Clínica, Ferrucio Fernando Dallari atualmente é um dermatologista conceituadíssimo, Ernani da Silva que está na Universidade de Santa Catarina e é pediatra. Esses estudantes eram os monitores que trabalhavam e estavam engajados na pesquisa científica como hoje os estudantes de pós-graduação. Era fantástico. Tínhamos um escasso apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa que tinha sido criada em 1962, tínhamos apoio da Organização Mundial de Saúde. Com isso e com o trabalho dos estudantes e a colaboração também do Dr. Reinaldo Quagliato, que era chefe do antigo dispensário de lepra de Campinas.
Todos os professores foram recrutados por convite. O convite foi sempre feito pelo primeiro diretor. Foi o Antônio Augusto Almeida que no meu caso específico. O Doutor Almeida sempre teve uma inclinação pela genética porque há uma grande tradição em genética na Oftalmologia e ele era um oftalmologista, um conceituadíssimo cirurgião do Instituto Penido Burnier e livre-docente da Universidade do Rio de Janeiro. Como ele estava interessado em Genética teve a idéia de criar um Departamento de Genética Médica, o que era uma coisa sui generis dentro das Universidades. Naquela época, genética não era como é atualmente. Parecia uma ciência esotérica para a maioria dos médicos. Ele encarregou o Dr. Alcides Carvalho, que era afilhado dele - O Doutor Alcides Carvalho foi o maior geneticista brasileiro em café e talvez a maior autoridade mundial em genética - ele encarregou o Doutor Alcides Carvalho de recrutar um geneticista para vir para Campinas. A primeira idéia do Professor Alcides Carvalho foi o Professor Pedro Henrique Saldanha, que tinha acabado de assumir a Disciplina de Genética dentro de Departamento de Bioquímica da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. O Saldanha disse: “Mas acabei de aceitar a Disciplina de Genética na USP, não posso sair e assumir outro compromisso. Mas, porque você não fala com o Bernardo. Ele está aí na outra sala vizinha. Quem sabe ele vem para Campinas.” Foi feito o convite e enviei o currículo para ser analisado. Naquela época o Antônio Augusto Almeida ouvia muito o Hadler (Walter August Hadler, contratado em fevereiro de 1963, para a cadeira de histologia e embriologia, foi o primeiro docente da Faculdade de Medicina) que era o único professor que ele tinha por aqui. Professor em tempo integral, era o único da Histologia. Por sorte, estava trabalhando na genética da resistência a lepra lepromatosa, que agora se chama hanseníase virsoviana e o Hadler tinha todo um passado de trabalhar em lepra experimental. Quando ele viu o meu currículo, falou “é esse aqui mesmo”. Mas o Almeida não era vencido facilmente. Como ele era muito interessado em genética, havia um congresso da SBPC (Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência) em Campinas e ele me convidou para um simpósio, o qual ele estaria organizando, para eu falar sobre glaucoma. Por sorte também, enquanto eu estava trabalhando em um dispensário de lepra da Vila Mariana, em São Paulo, havia uma secretária lá, que a família dela, uma família extensa de Sergipe, em que tinham diversos casos de glaucoma e era um tipo diferente de glaucoma juvenil, mas que não era do tipo dominante, era do tipo recessivo, que só acontece entre os colaterais, dificilmente se vê de pais para filhos. Por outro lado todos tinham sido operados por um primo dela, que era o Professor Durval Prado, da Santa Casa, da Clínica de Oftalmologia. Fui estudar esse caso com o Durval Prado e publicamos um trabalho que saiu no Jornal de Genetic Medic. Era o primeiro caso descrito de glaucoma juvenil recessivo, isso em 1963. Quando o Almeida me chamou para participar do Simpósio, evidentemente eu tinha uma experiência enorme. O Almeida ficou impressionado. E juntamente com o Hadler disse: “É esse que tem que ser o professor de Genética aqui”. Foi assim que eu vim para a Universidade Estadual de Campinas e para a Faculdade de Medicina: por obra do acaso.
(Introdução do primeiro Ambulatório de Genética Clínica do Brasil em 1969) O Walter Pinto Júnior, que era meu monitor desde o primeiro ano, ele que era da segunda turma, estava trabalhando em pesquisa e os amigos diziam na Sociedade Brasileira de Genética que eu estava preparando um geneticista biônico. Ele tinha que ter uma formação completa em genética clínica que não existia no Brasil. Não tinha nenhum geneticista clínico. Conseguimos dar uma formação completa para ele e quando estava no último ano da Faculdade de Medicina, já tinha condições para começar um ambulatório mas não tinha ainda autoridade para comandar. Como nós estávamos sempre em contato com um Neuropediatra preparadíssimo de Campinas, Doutor Paulo Bearzoti, nosso querido Paulinho Bearzoti, pedimos para o Paulinho que chefiasse o Ambulatório, porque na neuropediatria existiam numerosíssimos casos de doenças genéticas e também a orientar o Walter Pinto. O Bearzoti prestava serviços a Neuropediatria e a Neurologia da Universidade mas não queria vínculo empregatício com a Universidade. Ele não queria obrigações com a Universidade, mas mesmo assim se dedicava a ela.
Foi assim que nasceu o primeiro Ambulatório de Genética Clínica no Brasil.
Você passa o tempo todo “colocando azeitona na empada dos outros”. Você não faz nada para si. Existem suas compensações também quando a gente vê que nós podemos realizar alguma coisa com as pessoas que estagiaram. (Perguntado sobre os anos que chefiou o Departamento de Genética Médica da FCM). Posso me vangloriar atualmente que pude formar 70 ou mais pesquisadores com os títulos mais altos da carreira acadêmica que passaram pelo meu Departamento. Pude criar linhas de investigação de sucesso, porque na época em que eu comecei com a Genética e a Epidemiologia de lepra com a resistência e suscetibilidade da lepra lepromatosa, eu era considerado um “ser totalmente estranho”, porque todos os geneticistas, os poucos geneticistas, que trabalhavam em Genética Humana estavam dedicados a doenças constitucionais ou degenerativas. Jamais alguém podia pensar em doenças infecciosas. Tive a sorte de ser um precursor nessa linha de investigação.
É sempre agradável ser homenageado em vida (O Professor Doutor Bernardo Beiguelman foi homenageado durante 12 anos consecutivos pelas turmas da FCM). Essas homenagens foram fruto do contato que os professores tinham com seus estudantes. Era um contato fraterno. Era uma época em que a diferença de idade entre o professor e o aluno não era tão grande assim. No início da Faculdade de Ciências Médicas o contato com os estudantes era diuturno e as lutas também, para se criar a Universidade. As dificuldades eram imensas. Lembro que no início, quando o Governador Adhemar de Barros não queria que se desenvolvesse a Universidade Estadual de Campinas - aqui existia um segundo reitor chamado Mário Degni (Gestão de 10.10.1963 a 10.9.1965), um grande cirurgião vascular, já falecido, e que por sinal era adhemarista - nos reunimos, fomos estudantes, professores, futuros professores, todos para o Palácio do Governo que ficava no Campos Elíseos tentar uma entrevista com o governador, para ver se conseguíamos auxílio para a Universidade para que se pudessem implantar as engenharias, que era uma coisa prevista no projeto e o governador se negou a receber. Nós fomos recebidos por mero acaso: Encontrei o filho do Adhemar de Barros, que tinha sido meu colega na Faculdade. Foi aquela surpresa e ele me perguntou o que eu estava fazendo ali. Expliquei e ele disse: “Deixa comigo”. Fomos recebidos com pilhérias mas não conseguimos nada. O fato é que os professores e os estudantes estavam irmanados nessa luta de criação da Universidade. No começo, nós não tínhamos estufa. Fazíamos secagem de lâminas – tudo era improvisado com caixotes e lâmpadas – ficávamos controlando o aquecimento com lâmpadas. Os laminários para coloração de lâminas eram improvisados colocando dois pentes, um ao lado do outro, ligados por um pedacinho de madeira. Eu dava as aulas práticas no Instituto Penido Burnier porque o Doutor Monteiro Sales (José Francisco Monteiro Sales) ‘gostava de mim’. Ele falava para eu levar os alunos à noite. Os estudantes estavam irmanados com os professores nesse esforço de criação da Universidade. Não passa na cabeça de quem entra hoje, que o nosso Hospital de Clínicas, que é uma coisa de primeiríssimo mundo, que o começo foi naqueles andares alugados, em construção, com o chão ainda em cimento rústico. Os estudantes estavam vivendo com a gente. Essa é a razão pela qual eles nos homenageavam. Porque eles sabiam do esforço que nós estávamos fazendo para não deixar essa Universidade fenecer, não deixá-la ser destruída e também não deixá-la ser um instituto isolado.
Sou sempre agradecido a Universidade Estadual de Campinas, porque a Universidade me permitiu florescer e atingir um patamar importante dentro da ciência brasileira e no exterior. Mas acho que a Universidade também pode se orgulhar de mim porque também contribuí bastante para o desenvolvimento dela na criação de linhas de pesquisa e o que é mais importante: a criação de gente, que está em Pernambuco, em Natal, nos Estados Unidos, no Rio Grande do Sul, no Paraná, foram criadas no Departamento. Foram pessoas que estagiaram, monitores, pós-graduandos que receberam formação aqui dentro.
Entrevista concedida a Eduardo Vella