Cem anos após a sua eclosão, é consenso que a pandemia de influenza de 1918, a Gripe Espanhola, ainda hoje, seja a "mãe das pandemias" em tempos modernos. Ainda que potencialmente subestimados os números, em âmbito global, nas três ondas pandêmicas entre os anos de 1918 e 1920, se estima que em decorrência da pandemia um terço da população teria sido infectada e 500 milhões de casos teriam ocorrido, dentre os quais 50 milhões fatais (cerca de 3% da população mundial à época).
Um vírus emergente de elevada patogenicidade. Aglomerados populacionais em mundo sob intenso processo de urbanização e industrialização. Milhões de pessoas vulneráveis em decorrência da Primeira Guerra Mundial. Intensos e frequentes movimentos de milhares de tropas entre estados, países e continentes durante a grande guerra. Incipiente estruturação da saúde pública. Escasso número de profissionais da saúde e limitadas estratégias de prevenção e controle. Arsenal terapêutico inexistente. Foram esses alguns dos fatores que contribuíram para uma "tempestade perfeita" que resultaria na pandemia de influenza em 1918.
A despeito de muito ter sido compreendido e elucidado, ainda hoje, um século após, várias lacunas do conhecimento acerca da pandemia de 1918 continuam sendo objeto de estudo, de modo interdisciplinar e translacional, utilizando diversas áreas do saber, como virologia, imunologia, epidemiologia molecular, bioinformática e paleoepidemiologia.
Até a década de 1930, o vírus responsável pela pandemia permaneceu desconhecido; durante as décadas posteriores, pouco se sabia sobre ele. Foi somente no fim da década de 1990 que foi possível sua caracterização, viabilizada a partir tanto de análises de fragmentos de pulmões coletados de casos fatais em 1918 e conservados em blocos parafina quanto, surpreendentemente, do material de um cadáver vítima da influenza pandêmica preservado na permafrost do Alaska.
A partir daí, foi possível não apenas o sequenciamento do genoma completo do vírus, mas a "reconstrução" por virologia reversa do agente etiológico da maior pandemia do século XX. Testes subsequentes caracterizaram o perfil antigênico e fatores de virulência do vírus, além de demonstrar em modelos animais seu grande potencial patogênico. Se a virulência do vírus pandêmico, per se, já justificaria a elevada morbi-letalidade observada na pandemia de 1918, outras análises, também conduzidas nos tecidos pulmonares conservados, identificaram elevada frequência de co-infecção entre o vírus e bactérias (Streptococcus pneumoniae, Streptococcus pyogenes, Staphylococcus aureus), sugerindo que além dos eventos primariamente relacionados ao vírus, pneumonias bacterianas secundárias poderiam ter sido importantes causas de mortes durante a pandemia.
Se grandes foram os avanços em relação à caracterização do vírus pandêmico de 1918 e seus fatores de virulência, o mesmo não se obteve em relação às suas origens.
Ainda que alguns autores apontem que a emergência da pandemia tenha se dado em campos militares no estado do Kansas (EUA), diferentes estudos indicam que o vírus estaria circulando simultaneamente em diversas localidades do mundo - países da Europa, China, além dos EUA - tornando desafiadora a tarefa de estabelecer o local preciso de sua origem.
Ainda mais desafiador é desvendar as origens ancestrais do vírus influenza de 1918: teriam ocorrido sucessivos rearranjos entre distintos vírus da influenza, de origem humana e suína, seguidos da introdução de fragmentos de origem aviária precedendo a pandemia? Ou teria existido a introdução de um único vírus a partir de um hospedeiro (ainda desconhecido) diretamente aos humanos, um "salto entre espécies"?
De elevada gravidade, com rápida progressão para edema pulmonar, alterações neurológicas e óbito, uma característica marcante da pandemia foi o grande acometimento de indivíduos jovens, levando a um padrão de curva etária de casos e óbitos em “W” (menores de 5 anos; entre 20 e 40 anos; maiores de 65 anos), diferentemente da curva em “U” (menores de 5 anos; maiores de 65 anos) classicamente observada em epidemias anuais de influenza.
Por mais que a “Espanhola” ostente o título de "a grande pandemia", vale assinalar que outras tiveram suas relevâncias históricas, algumas precedendo – como as menos compreendidas pandemias de 1889 (vírus H3N8) e de 1899 (vírus H2N8) - outras, de "menor" magnitude, posteriores à pandemia de 1918: a Gripe Asiática (1957, vírus A H2N2, 40% a 50% da população mundial infectada, 1 a 2 milhões de óbitos) e a Gripe Hong Kong (1968, vírus A H3N2, 1 a 4 milhões de óbitos estimados). Mais recentemente, "as apostas" eram de que a próxima pandemia seria de origem aviária, possivelmente pelo vírus H5N1 detectado pela primeira vez em 1997. Contrariando as expectativas, em 2009, os fantasmas da pandemia de 1918 voltariam a assombrar o mundo, mas o vírus seria, novamente, um A H1N1. De origem suína e identificado nos EUA, o vírus pandêmico de 2009 foi responsável por cerca de 284 mil óbitos em apenas 12 meses.
Considerando que os vírus da influenza sejam susceptíveis a inúmeros (e imponderáveis) rearranjos genéticos, é mais que plausível considerar que a emergência de um novo vírus pandêmico seja um risco real e contínuo. Se por um lado os grandes aglomerados populacionais e o intenso fluxo de pessoas em âmbito global colaborariam para rápida disseminação de um vírus pandêmico, por outro a capacidade de resposta atual, em tese, tornaria o cenário menos dramático que aquele da pandemia de 1918.
Redes de laboratórios estruturadas e sistemas de vigilância permitem monitorar, em âmbito global, os padrões de circulação dos diferentes subtipos do vírus de influenza. Produzidas pela primeira vez em 1957, as vacinas contra influenza têm milhões de doses produzidas anualmente em suas apresentações tri ou quadrivalentes. A título de exemplo, apenas no Brasil, nada menos que 60 milhões de doses foram ofertadas em 2018 pelo Programa Nacional de Imunizações. Antivirais, sobretudo os inibidores da neuraminidase, vêm sendo utilizados, notadamente a partir de 2009, no tratamento da infecção pelo vírus influenza em pacientes mais vulneráveis e nas formas graves de gripe. Inexistentes um século atrás, antimicrobianos para tratamento de infecções bacterianas secundárias e terapias de suporte para pacientes críticos contribuiriam para minimizar o número de complicações e mortes em um cenário pandêmico.
E o futuro?
A emergência de um vírus com potencial pandêmico é mais que possível, talvez inexorável. No entanto, característica comum às pandemias de influenza é que todas surgem inesperadamente sem ser possível prever qual subtipo viral nem a data e local de emergência. Além do sempre candidato influenza H5N1 de origem aviária (860 casos, 454 óbitos desde 2003), há o vírus aviário A H7N9 (descrito pela primeira vez em humanos em 2013, associado à 40% de letalidade), o H9N2, o H7N7... Não podem ser esquecidos, entretanto, dos bem conhecidos vírus H1N1 e H3N2, passíveis de sofrer mutações com grandes recombinações genéticas (shift) gerando cepas pandêmicas.
Indubitavelmente, o mundo está mais preparado em 2019 que em 1918 para fazer face a uma nova pandemia de influenza. O conhecimento adquirido a partir do estudo do impacto e comportamento das pandemias passadas, contribuiu de modo singular para o enfrentamento de novos vírus pandêmicos. No entanto, desafios permanecem. Mesmo em cenário não-pandêmico, todos os anos, a influenza sazonal é responsável por algo em torno de 290 mil e 650 mil óbitos em âmbito global.
Por esse motivo, além do continuo aprimoramento dos sistemas de vigilância e da capacidade de diagnóstico laboratorial, há a necessidade de alcançar maiores taxas de coberturas vacinais, elevar a produção mundial de doses de vacinas, de se desenvolver vacinas mais eficazes - idealmente, uma vacina universal. Há de se desenvolver novas classes de antivirais, mais potentes, seguros e acessíveis a um maior número de pacientes. Protocolos e diretrizes terapêuticas para o manejo de formas graves da influenza devem estar disponíveis e passíveis de aplicação em todos os países.
Compreender as experiências passadas e aprimorar a capacidade de resposta aos problemas do presente são atributos imprescindíveis para o enfrentamento e mitigação de desafios futuros, incluindo pandemias.
Rodrigo Nogueira Angerami é graduado em Medicina pela Faculdade de Ciências Médicas Unicamp e especialista em moléstias infecciosas. Atua em Medicina Tropical e é professor de epidemiologia das doenças infecciosas do programa de pós-graduação em Saúde Coletiva da FCM. Atua na seção de epidemiologia hospitalar do Hospital de Clínicas da Unicamp e médico infectologista do Departamento de Vigilância em Saúde da Secretaria Municipal da Saúde de Campinas.