Boletim FCM

 

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ISSN: 2595-9050
 

Sedentarismo, obesidade e alimentos processados

Data de publicação
08 out 2019
comida
Foto: Mario Moreira - FCM/Unicamp

Um dos grandes desafios da sobrevivência da espécie humana é a nutrição. Embora sejamos seres com grande evolução biológica, somos incapazes de sintetizar matéria orgânica a partir da inorgânica e de incorporar matéria orgânica vegetal, o que nos condiciona a procurar formas de alimentos específicos e nem sempre disponíveis em abundância.

Ao longo do processo civilizatório, os hábitos alimentares foram sendo cada vez mais diversificados e a maneira de preparo do alimento diferindo de um povo para outro em decorrência do desenvolvimento social, tecnológico e econômico. No Brasil, a industrialização alimentar é fortemente impulsionada após a Segunda Guerra, quando se difundiu o uso de enlatados, embutidos e engarrafados.

O modo de vida tradicional que preservava dietas culturalmente estabelecidas e transmitidas de geração para geração foi esquecido e adotou-se o consumo de alimentos sobre os quais não se tem informação nem tradição de consumo. Perde-se com isso uma tradição alimentar saudável e opta-se por uma alimentação valorizada pelo sabor acentuado, baixo preço, grandes quantidades e alto teor energético.

O processamento de alimentos decorreu da necessidade de conservar os alimentos pelo maior tempo possível, o que foi fundamental para garantir a segurança, palatabilidade e qualidade do alimento. Inicialmente utilizava-se o sol, o fogo e o gelo. Com o desenvolvimento da tecnologia incorporaram-se a pasteurização, a liofilização, adição de sal, açúcar, azeite e hoje, de acordo com o jornalista especializado em nutrição Michael Pollan, as indústrias produzem “substâncias comestíveis parecidas com comida”.

Os alimentos são classificados como: in natura, minimamente processados, processados e ultraprocessados. Os alimentos in natura são obtidos das plantas ou animais; os minimamente processados são os alimentos in natura que submetidos à manipulação industrial, sem adição de sal, açúcar, óleos, gorduras ou outras substâncias; os processados são derivados de alimentos in natura, adicionados com sal, açúcar ou outras substâncias e os ultraprocessados são prontos para consumo, podem ou não ser aquecidos, acrescidos de óleos, gorduras, açúcar, amido, proteínas, gorduras hidrogenadas, amido modificado, corantes, aromatizantes, realçadores de sabor e vários tipos de aditivos que dão propriedades sensoriais atraentes aos produtos.

A Organização Pan-Americana de Saúde (OPAS), em 2015, divulgou relatório onde constata um aumento na venda per capita de produtos ultraprocessados seguida do aumento do peso corporal médio das populações dos países latino-americanos estudados.

No Brasil, estima-se que cerca de 15% das crianças e 8% dos adolescentes apresentam excesso de peso e estima-se que oito em cada dez adolescentes continuarão com excesso de peso na fase adulta.

Portanto, a consequência deste modo artificial de se alimentar provoca um impacto importante sobre a morbimortalidade de crianças, adolescentes e adultos, onde a alimentação inadequada, o tabagismo, o excesso de bebidas alcoólicas e a inatividade física respondem pela maioria das doenças crônicas não transmissíveis.

As crianças, por sua vez, estão em um período onde se desenvolve a maior parte de suas potencialidades e possuem um organismo mais vulnerável com exigências nutricionais mais diferenciadas que um adulto. O aleitamento materno tem sido reconhecido como a melhor estratégia de nutrição para os bebês, seguido de introdução de alimentos saudáveis, e o desmame precoce causa problemas decorrentes da falta dos elementos nutritivos e imunológicos do leite materno e favorece o uso de leites artificiais com enriquecimento energético desproporcional das mamadeiras e acréscimo exagerado de açúcar e farináceos.

O acesso fácil e globalizado a alimentos ultraprocessados tem sido incorporado precocemente na rotina alimentar destas crianças, desrespeitando o padrão natural de crescimento e desenvolvimento destas e impactando o modo como se alimentarão para o resto da vida. Estudos têm demonstrado uma forte associação entre estas práticas alimentares inadequadas e a obesidade infantil.

Logo, a redução do esforço físico despendido no cotidiano, acrescida de uma redução do lazer ativo tanto dos pais quanto das crianças, as faltas de espaço nas moradias e de equipamentos sociais adequados, aliados à insegurança das ruas e excesso de tempo gasto em frente a televisores, videogames e computadores, a perda do hábito de comer à mesa, a televisão ligada, o hábito de comer fora de casa, a introdução precoce das guloseimas, a merenda escolar supercalórica, os alimentos disponíveis nas cantinas de escola, vão desviando o hábito alimentar da criança de um cardápio e de um ritual alimentar saudáveis para uma “alimentação padrão”, vinculada mais à indústria e ao comércio, e contribuindo para a “cultura do sedentarismo”.

Concluímos com uma citação de Michael Pollan:

Não coma nada que sua avó não reconheceria como comida...


Maria Angela Reis de Goes M. Antonio é pesquisadora e médica do Serviço de Obesidade na Infância e Adolescência do Hospital de Clínicas da Unicamp e professora do Departamento de Pediatria da FCM