Entre os polos da ilustração acima percorremos nossa existência. Ora vibrando num, ora no outro. Entre eles encontram-se nossas possibilidades relacionais de nosso mundo interno e externo. Família, escola, comunidade, trabalho, sociedade, mundo... Corpo, órgãos, tecidos, células... Percepções, emoções, pensamentos, espiritualidade... O modo de produção de bens, materiais e imateriais, de sobrevivência e de vivência de nossas sociedades. Nas capitalísticas e globalizadas como a nossa, repetidas crises entre estes dois polos têm-se produzido. Crises próprias de sua constante necessidade de se reproduzir, de se ressignificar, gerar novas capturas, mercadorias e valores quase sempre extensivos na intenção, mas carentes de valores verdadeiros e, na maioria das vezes, tendendo à exclusão e ao vazio...
Entre estes dois polos, nos encontramos com nossas crianças e adolescentes e o grande desafio de acolher e lidar com o sofrimento gerado pela depressão, pela ansiedade e pelo vazio, muitas vezes insuportável em suas experiências de vida. Vazio convidado ansiosamente a ser preenchido com algo que o alivie: consumo desenfreado, ingestões incontroláveis de comida e de substâncias psicoativas, outras compulsividades, obsessões, hiperatividade, impulsividade, apego exagerado ao corpo, etc. Tudo isto gerando mais insatisfação e respostas agressivas, autolesivas, podendo até levar a pulsão de morte atormentar o pensamento, a ideia e, por vezes, a própria ação.
Uma pergunta se impõe: como lidar com este sofrimento evitando a sedução da medicalização, do diagnóstico imediato, centrado apenas na responsabilização do sujeito em sofrimento e sua perda de autocontrole? Como lidar sem reduzir, no entanto, a possibilidade de identificar quando o medicamento é necessário?
A primeira estratégia de enfrentamento, sem dúvida, é o acolhimento do sofrimento. A verdadeira escuta.
Aquela que é feita mais com coração do que com os ouvidos, sem dispensá-los evidentemente, mas sintonizando-os à nossa emoção. É necessário criar espaços seguros de expressão de suas angústias. Promover acolhimento que toca o outro oferecendo algo que lhe permita deslumbrar uma linha de fuga ao vazio e, assim, preenchê-lo de alguma esperança, alívio e superação. Aqui, é fundamental um deslocamento que só é possível quando ampliamos nosso raciocínio clínico, incluindo nele a abordagem psicossocial.
É necessário incluir na abordagem clínica um olhar e escuta dos ambientes relacionais das crianças e adolescentes. Um olhar e escuta de seus contextos, suas vicissitudes e fissuras que revelam a fragilidade dos vínculos, a tensão dos afetos e a polaridade das emoções. Em outras palavras, explorar a dinâmica das relações familiares, a segurança ou não dos vínculos, as expectativas, os padrões de controle e de diálogo, possíveis traumas, repetições geracionais de modos de educar, etc.
Outro ambiente relacional importante é o ambiente escolar, a tensão das relações entre os pares, a proposta pedagógica, a competição sobrepondo a cooperação, a tensão das provas, provações e provocações. Assim como, o bairro também é muitas vezes outro espaço relacional do território que pode estar interferindo no viver cotidiano através do medo, da insegurança, do risco de violência, da atração, das capturas do desejo, da ausência de possibilidades de lazer, assim como da ambiência descuidada e abandonada pelos poderes públicos.
Há também o ambiente virtual, onde as relações tornam-se impessoais, distantes da empatia, teleguiadas, e mais uma vez, em geral, uma falsa linha de fuga.
Do brincar teleprogramado ao relacionamento virtual em redes “sociais”, a saída para muitas famílias é propiciar aos filhos algo eletrônico que lhes alivie o tédio, que compense a falta de tempo, de uma boa conversa, de uma boa história, de trocas significativas. O estresse e cansaço do cotidiano dos adultos assim se camuflam no silêncio concentrado das crianças e adolescentes nas telas e telinhas, tentando superar desafios virtualmente propostos, exposições inadequadas, assédios da publicidade, etc.
Além da abordagem clínica ampliada, outra estratégia terapêutica é o vínculo entre o profissional de saúde e criança e adolescente em cuidado. Sem esquecer que eles necessitam apoio e segurança de todos em seus espaços relacionais: familiares, escolares, comunitários e virtuais. Daí a necessidade de também incluí-los na escuta e cuidado. Ou seja, é importante cuidar de todos, da parceria e atenção às escolas, dos centros comunitários e demais equipamentos sociais disponíveis na comunidade.
Para isto, é fundamental o trabalho no território e em equipe, incluindo todos os profissionais dos serviços de saúde e dos demais setores de assistência e cuidado: educadores, assistentes sociais, profissionais da justiça, conselheiros tutelares, entre outros. É necessário conhecê-los pelo nome, saber como trabalham e participar de espaços conjuntos, encontros de equipe, encontros matriciais que auxiliem na discussão das situações complexas, e de encontros intersetoriais. É necessário, assim, gestão do cuidado e tempo para realizá-lo. E entre todos construir estratégias singulares de cuidado, linhas de fuga às capturas, novas possibilidades de vida e existência.
Fernando Cesar Chacra é médico da FCM na área de pediatria social e atua com ênfase nos aspectos psicossociais da infância e adolescência