Vendo o invisível: pesquisa da FCM valida novo método para análise de fármacos opioides no humor vítreo, post-mortem
Atenta ao número crescente da farmacodependência desencadeada pelo uso de medicamentos opioides para o gerenciamento da dor, bem como pela entrada de compostos emergentes no mercado de drogas ilícitas, uma pesquisa da Faculdade de Ciências Médicas (FCM) da Unicamp, realizada em conjunto com os institutos médico-legais da Polícia Civil do Estado de São Paulo, validou um novo método para análise dessas substâncias no humor vítreo, pós-mortem. A nova técnica – do tipo metabolômica alvo multinalito – é capaz de detectar 35 tipos de compostos, dentre eles naturais, semissintéticos e sintéticos (derivados de fentanil, mitraginina e oxicodona), em menor tempo, utilizando a cromatografia líquida de ultradesempenho acoplado à espectrometria de massas (UHPLC-Q-Orbitrap-MS), atualmente aplicado nesse tipo de análise.
“Nosso objetivo foi o de desenvolver um método tóxico-analítico rápido, eficiente, robusto e ecologicamente consciente, conferindo validade científica à toxicologia forense contemporânea, que desempenha importante papel na sociedade. Com isso, conseguimos realizar todo o processo de detecção e quantificação de todas as substâncias em apenas 11 minutos”, disse o pesquisador e toxicologista forense do Departamento de Patologia da FCM, Júlio César Santos Júnior, sobre o resultado do seu estudo, que contou com a orientação dos professores Nelci Fenalti Höehr (falecida em 2018) e Roberto Rittner Neto.
Em sua pesquisa Júlio César utilizou o humor vítreo como matriz alternativa biológica de análise. Nos últimos 50 anos, o humor vítreo tem sido utilizado na toxicologia forense como uma alternativa ao sangue e a urina, justamente pela falta de vascularização, distanciamento anatômico das vísceras e proteção relativa do globo ocular, sendo mais eficiente quando o sangue não pode ser amostrado, ou no caso de suspeita de redistribuição de compostos pós-mortem, ou ainda quando existe suspeita de contaminação bacteriana ou química.
“Entre os biofluidos mais comumente usados em estudos toxicometabolômicos, sangue e urina possuem destaque, mas o humor vítreo também é um alvo importante e às vezes exclusivo. Avanços em imagens vítreas, análises (bio)químicas, metalômicas, bem como metabolômicas, como também estudos recentes, trouxeram insights inestimáveis sobre a constituição molecular deste órgão viscoelástico aparentemente invisível, tornando-a cada vez mais elegível à toxicologia forense. O vítreo possui natureza gelatinosa, sendo relativamente acelular, ou seja, possui apenas uma monocamada de fagócitos mononucleares e halócitos ou células vítreas. Ele é composto principalmente de água (cerca de 98 a 99,7%), fibras de colágeno, açúcares (glicosaminoglicanos, predominantemente hialuronano), proteínas (não colagênicas) e pequenas quantidades de elementos e metais-traço", explicou o pesquisador
Júlio César explica que a técnica Q-Orbitrap-MS tem sido aplicada para screening e quantificação de drogas, metabólitos e biomarcadores em humor vítreo de corpos em decomposição, com diferentes intervalos post-mortem. Embora a composição do humor vítreo seja influenciada pelo tempo post-mortem com mudanças significativas em sua composição (bio)química devido à intensa atividade de putrefação do corpo, o pesquisador explicou que tanto os opióides quanto os seus metabólitos puderam ser adequadamente caracterizados. “Os parâmetros adequados e os fatores considerados mais importantes para o desenvolvimento analítico foram determinados. Configuramos o espectrômetro de massas para operar alternando o modo de ionização positiva para FULL-MS, TARGET-SIM e FULL-MS/MS2”, contou Júlio César.
Ainda de acordo com o pesquisador, a oferta de um número de amostras biológicas estatisticamente significativas e válidas científicamente, ante ou post-mortem, é outro ponto relevante em seu estudo. “Quando falamos de corpos em avançado estado de decomposição, obter essas amostras não é nada fácil, pois dependemos de muitos fatores para a realização do nosso trabalho de investigação, como sazonalidade, autorização ética da família, caso clínico específico e assim por diante”, disse.
Para Júlio César, o estudo de novos compostos ou ainda emergentes, bem como a oferta de estratégias inovadoras no preparo de amostras alternativas e no desenvolvimento de metodologias tóxico-analíticas (público-privadas, inclusive periciais) têm grande importância no contexto dos estudos toxicometabolômicos. “Precisamos contribuir para o avanço do reconhecimento e da quantificação da presença de drogas de abuso ou substâncias estranhas ao corpo (xenobióticos) como álcool, remédios para dormir, remédios para emagrecer e substâncias sintéticas, dentre outras, e assim eleger novos biomarcadores visando à descoberta da causa mortis e do intervalo post-mortem, agilizando, por exemplo, a resolução de casos suspeitos de óbitos decorrentes por overdoses”, concluiu o pesquisador.