O assédio moral no trabalho pressupõe o desrespeito aos limites subjetivos de cada trabalhador
O respeito aos limites subjetivos de cada trabalhador é condição fundamental na luta contra o assédio moral no âmbito das organizações, sejam elas públicas ou privadas. Esse foi o alerta dado pela psicoterapeuta e perita judicial da PUC São Paulo, Renata Paparelli, durante a palestra “A falta de voz: assédio moral e trabalho”, realizada no mês de novembro, na Faculdade de Ciências Médicas (FCM) da Unicamp a convite do Centro de Estudos e Pesquisas em Reabilitação “Prof. Dr. Gabriel de O.S. Porto” (Cepre) e do curso de Graduação em Fonoaudiologia da FCM, onde Renata atua como professora visitante.
“Antes de abordar o assédio moral nas instituições, é preciso lembrar que os principais aspectos a serem considerados na relação existente entre saúde e trabalho dizem respeito à possibilidade de respeitar os limites subjetivos de cada trabalhador”, afirmou Renata, acrescentando, porém, que essa não uma questão simples.
“Primeiro, porque o limite subjetivo – que define o quanto cada pessoa suporta as demandas do trabalho por certo período de tempo – não é estático, ou seja, muda de acordo com as transformações vivenciadas ao longo da vida. Segundo, porque somos diferentes um dos outros. Se o mundo do trabalho reconhecesse essas duas características, já teríamos muitas coisas boas acontecendo” – afirmou.
De acordo com Renata, ao terem os seus limites subjetivos extrapolados e as suas individualidades desconsideradas, os trabalhadores atuam como máquinas de produtividade. De tal maneira que, uma vez obrigado a desrespeitar seus limites de forma sistemática, acabam abrindo espaço para que o sofrimento psíquico, o transtorno e o desgaste mental associado ao trabalho se instalem.
Quando o trabalhador é refém da sua atividade laboral, ou seja, manda pouco ou tem poucas chances de reinventar a sua rotina, e apenas obedece às ordens de alguém, o trabalho passa a ser penoso e o profissional tem grandes chances de desenvolver algum tipo de transtorno mental relacionado ao trabalho.
“Eu não falo de coisas estratosféricas, ou filosoficamente inalcançáveis. Refiro-me a necessidade de ir ao banheiro, por exemplo. Sabemos que a norma regulamentadora do trabalho dos profissionais teleoperadores afirma ipsis litteris que o trabalhador tem o direito a satisfazer as suas necessidades fisiológicas sempre que elas aparecerem, mas nós sabemos que esse limite subjetivo não é respeitado”.
Organização do trabalho e assédio moral
Ainda de acordo com Renata, se antes a organização do trabalho de forma verticalizada, com chefes, supervisores e trabalhadores do chão de fábrica delineava, claramente, a posição ocupada pelos trabalhadores dentro do complexo produtivo. Agora, as novas formas de gestão do trabalho esvaziam essa lógica e colocam os indivíduos em outras posições. “Hoje não há mais trabalhadores ou peões, mas colaboradores, não há mais chefes, mas líderes, gerentes e coordenadores. Todos fazem parte de um grande time”, ironiza Renata, para explicar como se dão as novas formas de avaliação e controle do trabalho.
Mudanças no mundo do trabalho têm intensificado os processos de trabalho e contribuído para que o assédio moral encontre terreno fértil no âmbito das instituições. Nas formas mais tradicionais de gestão de trabalho, o principal atributo dos trabalhadores era um ‘saber fazer’ associado a certo grau de obediência. “Agora, o que se pede é resiliência, capacidade de suportar pressão, polivalência, criatividade, trabalho em equipe, pro-atividade, dentre outros aspectos subjetivos, ou seja, as novas formas de gestão de exigem do trabalhador uma espécie de ‘saber ser’ e não de ‘saber fazer’. Precisamos ser atletas de alto desempenho, o tempo todo, e ainda precisamos ser felizes e saudáveis”, critica.
Em sua vertente mais cruel e atual o assédio moral tem adquirido novas nuances. Nela, o trabalhador é levado a ser o algoz de si mesmo. “Nesse novo cenário, as formas antigas de gestão do trabalho não servem mais. Na atualidade o peso e a responsabilidade não estão mais sobre os chefes ou avaliadores, mas nos próprios trabalhadores, que agora são líderes, gerentes, membros da equipe”.
Renata Paparelli fala em uma espécie de cultura do assédio que dá a oportunidade para que o assédio moral ganhe cada vez mais força no interior das instituições, a despeito do otimismo de muitos em relação às novas formas de organização e gestão do trabalho. “Como líder, eu tenho que fazer com que o meu grupo trabalhe exaustivamente, feliz e motivado. Nesse cenário vemos os prêmios de incentivo e motivação que mais do que motivar aqueles que se destacam, na maioria das vezes, humilham àqueles que não batem a meta”, ironiza Renata.
O caminho de enfrentamento, ainda de acordo com a professora visitante da Fonoaudiologia da FCM, está na construção de coletivos dos trabalhadores e no fortalecimento de redes de trabalho dispostas a transformar a forças paralisantes em formas de movimentos.
“Resgatar o caráter coletivo das práticas, promover maior articulação entre o conhecimento prático e teórico e resgatar o controle sobre o próprio trabalho são alguns caminhos. Mas, é importante não confundir esse controle com ‘autonomia falseada’ ou o que chamamos de ‘gestão da miséria’, em que o trabalhador ‘pode fazer tudo’, desde que sem nenhum recurso, ou seja, na verdade ele não tem poder algum sobre o que realmente importa”, finaliza Renata.