Os cientistas da Natureza: A representação indígena na pesquisa científica
Publicado por: Karen Menegheti de Moraes
25 de novembro de 2022

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Recentemente, ocorreu uma competição científica internacional sediada na França que divulgou diversos estudos da área de biologia sintética, o IGEM (International Genetically Engineered Machine). A representante da Unicamp e dos povos indígenas do Brasil foi a doutoranda da Faculdade de Ciências Médicas (FCM) da Área de Clínica Médica, Kellen Vilharva, da etnia Guarani-Kaiowá (Jaguapiru, Dourados - MS). Em entrevista inédita, ela contou à Comissão de Acolhimento de Alunos Indígenas da FCM sobre essa experiência de divulgar o saber dos anciãos indígenas à comunidade científica internacional.

1 - Sobre qual tema é o seu doutorado? Explique um pouco mais sobre sua pesquisa e como ela está atualmente.

Kellen Vilharva - Minha pesquisa é sobre a etnofarmacologia do cedro, Cedrela fissilis. Considerada uma entidade, o cedro é uma árvore sagrada para o meu povo, nós utilizamos suas folhas e cascas para banhos e chás no tratamento de febres e dores musculares. Além disso, o cedro é utilizado no tratamento de doenças espirituais, ela tem a capacidade de trazer paz para o espírito e para o lugar, por isso é comum plantarem nos quintais. O cedro também é utilizado na fabricação de instrumentos sagrados (altar) e no ritual de batismo das crianças e da ogapysy (casa de reza). Especificamente vou utilizar extratos das folhas e das cascas em linhagens de cânceres para avaliar o potencial anticâncer do cedro, em meu levantamento bibliográfico observei compostos que podem ter esse efeito, mas não há estudos demonstrando esse efeito. Eu fiz algumas entrevistas com os anciãos da minha região e eles me contaram muita coisa sobre o cedro, fiz a extração dos extratos com solventes das folhas e das cascas, o próximo passo é fazer a atividade in vitro e em seguida o in vivo, para isso estou fazendo os treinamentos necessários.

2 - Houve alguma inspiração especial para a pesquisa atual?

Kellen Vilharva - O fato do cedro estar presente na minha vida, ser importante para o meu povo e a necessidade de registrar esse conhecimento me levou a escolher essa espécie, na verdade eu acho que ela me escolheu. A minha região é muito devastada, existe uma necessidade de preservar e restaurar as matas onde o cedro é encontrado, escrever sobre esse conhecimento pode ajudar na preservação dessa espécie.

3 - Você já trabalhou com outros temas e se envolveu com outras pesquisas? Comente um pouco sobre.

Kellen Vilharva - Eu iniciei a minha pesquisa com etnofarmacologia no mestrado, onde escrevi sobre a importância cosmológica do mbuku (Rhynchophorus palmarum) e a importância do óleo (mbuku kyra) extraído dessa larva para nós guarani kaiowá. Nós publicamos um artigo sobre essa pesquisa (https://journals.plos.org/plosone/article?id=10.1371/journal.pone.0249919). Atualmente, além do doutorado também estou participando de um projeto com pesquisadores da FIOCRUZ e UFPE, projeto é o Acervo Pohã Ñana é um projeto sobre acesso e proteção do conhecimento tradicional para o cuidado em saúde dos Guarani Kaiowá, estamos escrevendo uma cartilha que será em guarani e português que fala sobre a propriedade intelectual, projetos na aldeia e repartição de bens.

4 - Retrocedendo um pouco mais sobre sua carreira, qual a sua formação e trajetória acadêmica?

Kellen Vilharva - Eu sou formada em Ciências Biológicas Bacharelado (UEMS) e fiz mestrado em Biologia Geral (UFGD). Desde a graduação eu me interessei pela pesquisa e laboratório, fiz várias iniciações científicas que me ajudaram a conhecer esse mundo, participava de muitos eventos. Tanto a graduação quanto o mestrado eu fiz em Dourados no Mato Grosso do Sul. No doutorado eu resolvi sair do Mato Grosso do Sul, passei na Unicamp e entrei em 2021.

5 - Por que escolheu cursar ciências biológicas? E a inclinação à etnofarmacologia?

Kellen Vilharva - Os povos indígenas são cientistas por natureza, nós somos curiosos, nós observamos a natureza e criamos nossas metodologias. São tecnologias que hoje sofreram apagamento e são pouco valorizadas. Minha avó é Nhandesy, ela conhece as plantas que curam, as rezas e sempre me chamou atenção essa parte do poder de cura das plantas. E como pesquisadora indígena digo que a parte importante não é apenas a do laboratório ou os compostos químicos, saber porque as plantas são sagradas, o modo de preparo, os cantos e rezas que fazem parte da metodologia tradicional também é muito importante. Essa área possibilita essa junção.

6 - Recentemente, você participou de um Congresso na França. Poderia nos contar um pouco como foi a experiência e a recepção do seu tema.

Kellen Vilharva - O congresso em que eu participei foi o IGEM (International Genetically Engineered Machine), é uma competição de várias universidades dentro da área de biologia sintética. É uma área que pode trazer muitas soluções, porém tem que haver um cuidado muito grande, minha função como cientista foi alertar sobre os cuidados, sobre a ética e bioética e falei sobre as pesquisas que envolvem algum conhecimento tradicional e o respeito que se deve ter com os povos tradicionais.

7 - Como foi ter esse espaço para a voz dos povos indígenas dentro de um evento científico na França? Como se sente representando o seu povo em um evento internacional?

Kellen Vilharva - Foi muito importante esse espaço, eu fui a única indígena nesse evento, de forma que isso acabou representando não só o meu povo, mas todo povo indígena do Brasil. Como cientista, pesquisadora, foi uma felicidade e também uma responsabilidade muito grande, representando tantas pessoas e falando sobre um tema tão essencial que é a ética e a bioética dentro das pesquisas.

8 - E quais os cuidados que as instituições de ensino e pesquisa devem se atentar?

Kellen Vilharva - As instituições de ensino e pesquisa devem respeitar todas as questões éticas e bioéticas, enfatizando as pesquisas que envolvem indígenas. É necessário cada vez mais integrar pesquisadores indígenas a esse ambiente para que eles não sejam apenas “objeto de pesquisa”, mas sim pesquisadores ativos, o que evitaria muitos equívocos dentro das diferentes áreas da academia.

9 - Na sua visão, quais os principais desafios do estudante indígena no ambiente acadêmico tradicional?

Kellen Vilharva - Pela minha experiência, muitos professores não têm consciência ou não querem respeitar o fato de que nós já somos inseridos na academia com nossos conhecimentos. Respeitar que aquele aluno vem de uma realidade muito diferente e que o período de adaptação é difícil, é algo que nem todos os professores fazem. A saudade de casa, da rotina da aldeia, da comida, do ar, dos rituais, das plantas e animais é muito grande, e tudo isso atinge diretamente o bem-estar e consequentemente o rendimento de um aluno indígena. Sem falar no racismo que existe por parte dos colegas e professores. Muitos de nós chegam sem falar o português muito bem ou não escrevem muito bem, e isso não é porque o aluno indígena é inferior, ao contrário, alguns falam a sua língua nativa ou várias. Sinto que a UNICAMP precisa melhorar muito ainda quando se trata de bem-estar dos alunos indígenas, nos sentimos falta dos nossos rituais, das nossas comidas, da vida que deixamos para virm em busca de nossos sonhos.

Autoria: Branda de Oliveira de Lima e Giovana Pacheco
Texto original em pdf.
Comissão de Acolhimento de Alunos Índígenas
FCM Unicamp



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