Livro “Dependência Química: racismo, gênero, determinantes sociais e direitos humanos” é lançado na FCM
Publicado por: Karen Menegheti de Moraes
10 de maio de 2023

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Foi lançado na última sexta-feira (5), no anfiteatro da Graduação em Medicina da Faculdade de Ciências Médicas (FCM) da Unicamp, o livro “Dependência Química: racismo, gênero, determinantes sociais e direitos humanos” pela Appris Editora. A organização é da Associação Brasileira de Estudos em Álcool e outras Drogas (ABEAD). Após palestras, houve sessão de autógrafos no Espaço das Artes. A publicação reúne 10 capítulos escritos por especialistas sobre o fenômeno complexo e multifatorial que é a dependência química.

Vídeo: Marcelo Oliveira/ARPI

Direitos Humanos

Silvia Santiago, diretora executiva de Direitos Humanos da Unicamp, ressaltou a importância do livro para reflexão no sentido de recompor o direito do usuário de drogas a uma vida digna. “Renata, eu parabenizo em seu nome a todos autores do livro, pois faz a gente compreender melhor os caminhos para avançar no cuidado”. Silvia contou sua experiência na penitenciária feminina de Campinas em 2006, e na Fundação Casa, em 2017. Em ambos os casos, ela afirma que houve discriminação dos encarcerados em função de seus determinantes sociais, como raça, gênero e classe.

A diretora enfatiza que “entre a população em geral mais pobre, temos essa discriminação, o racismo estrutural, que vai sendo demonstrado como racismo da instituição de segurança pública. Isso é uma tragédia social”. Um exemplo de mudança apontado pela professora foi a articulação, feita com a Unicamp, da participação dos alunos da Fundação Casa em cursinhos populares, que resultou na aprovação de diversos deles em universidades públicas e com bolsa integral universidades privadas. “Isso mostra a potencialidade que as políticas públicas têm no sentido de reverter situações de vida em que os nossos jovens e mulheres tem sido colocados”.

Sherydan Oliveira, Alessandra Diehl, Silvia Santiago, Renata Azevedo, Rogério Bosso e Selene Barreto. Foto: Karen Moraes/ARPI

Interseccionalidades

Alessandra Diehl, presidente da ABEAD, falou do capítulo que trata da relação entre a “teoria da interseccionalidade” e o campo das dependências químicas. Segundo ela, “a teoria sinaliza que a experiência humana é constituída por todas as interações, no nível micro (raça, sexo, classe social), ligadas a desigualdades no nível macro e estrutural (patriarcado, racismo, pobreza e sexismo)”. Ainda de acordo com a teoria, os indivíduos socialmente excluídos experimentam múltiplas formas de discriminação, estigma e desvantagens que refletem nestas identidades sociais que se cruzam ou se sobrepõem.

Um exemplo de interseccionalidade no campo da dependência química é a diferença de vivência de uma mulher preta com alcoolismo de uma mulher branca na mesma situação. Pesquisa de 2009 da Fundação Perseu Abramo sobre os preconceitos somados e a interseccionalidade indica que 41% da população brasileira tem repulsa, ódio e antipatia a usuários de drogas. “Nós precisamos parar de fazer mal para nós mesmos dessa forma: que estereotipa, discrimina e segrega pessoas por todas essas interseccionalidades”, disse Alessandra. Ela também alertou para a atuação dos profissionais de saúde nesse sentido: “Nós fomos formados para cuidar de seres humanos”.

Racismo

Selene Barreto, fundadora do Instituto Re-Evolução e Transformação Social, tratou da relação entre racismo e dependência química. Segundo o IBGE, 56% da população brasileira se autodeclara negra. Para o IPEA, as mulheres e homens pretos ou pardos são os mais afetados do ponto de vista econômico, e estão na base da pirâmide da hierarquia social. O Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias de 2019 indicou que 64% dos que cumprem penas em prisões são negros, jovens e de baixa escolaridade. Em 2016, o Ministério da Saúde identificou alta taxa de mortalidade por suicídio entre jovens, sendo seis negros a cada dez pessoas. 

“Lidar com essa vida de preconceito, angústia, medo, negação, baixa autoestima e invisibilidade marca qualquer um de nós. Muitos vão buscar na droga o alívio dessa dor”, afirmou Selene, apontando a questão do racismo estrutural. Ela declara que, segundo pesquisas especializadas, “o tratamento é visto como bem-sucedido se for capaz de manter o paciente no programa. Abrange todos os aspectos da vida do indivíduo”. Por fim, Selene apresentou as principais recomendações de tratamento e prevenção à dependência química: dispor de equipe especializada que contemple a diversidade; oferecer acolhimento à dor sem preconceito; ter olhar diferenciado para a prevenção de recaída de pessoas negras; entre outros. 

Renata Azevedo, docente do Departamento de Psiquiatria, assina capítulo do livro sobre HIV/AIDS. Foto: Karen Moraes/ARPI

População LGBTQIAPN+

Rogério Bosso, coordenador do curso de Psicologia da Faculdade Anhanguera, ministrou palestra a respeito de intervenções para a população LGBTQIAPN+ com Transtorno por Uso de Substâncias. Ele assina capítulo do livro juntamente com Alessandra Diehl e Amilton dos Santos Júnior, professor do Departamento de Psiquiatria da FCM. Rogério explica que a sigla aumenta conforme surgem novos grupos identitários, que precisam ser contemplados por conta de suas particularidades. “Essa população sofre mais com problemas físicos e mentais mais do que as demais. Isso está ligado aos estigmas, preconceito e menos acesso aos serviços de saúde - muitas vezes por vergonha e falta de acolhimento”, declarou.

“Os problemas associados ao uso de substâncias psicoativas (SPA) na população LGBTQIAPN+ incorrem também em maior morbimortalidade. Em alguns casos, particularmente entre mulheres lésbicas e bissexuais, as disparidades com base na baixa educação, baixa renda ou residência em bairros desfavorecidos podem refletir maior vulnerabilidade psicossocial e mais problemas por uso de SPA”, disse o professor. Entre as recomendações aos profissionais de saúde, estão: perguntar sobre orientação sexual e identidade de gênero; considerar que o uso de substâncias psicoativas está frequentemente associado a outros fatores de marginalização, como pobreza, moradia e violência física e sexual; e criar grupos dirigidos para o público.

Patriarcado

Sherydan Oliveira, do Instituto Padre Haroldo, abordou em sua palestra a relação entre mulheres, patriarcado e dependência química. O capítulo do livro que trata do assunto é assinado juntamente com Alessandra (ABEAD). Nas Ciências Sociais, Heleieth Saffiotti (1934-2010), estudou com pioneirismo no Brasil questões de gênero, patriarcado e violência. A “teoria do nó” consiste na intersecção de gênero, raça/etnia e classe social, que é a articulação de elementos estruturais de marginalização social e que não são uma somatória, mas uma imbricação dessas relações. “O nó são determinações que se integram e formam uma nova realidade social”, afirmou Sherydan.

“O patriarcado expressa uma ordem social. O homem é o proprietário da mulher. O que ele pensa tem predominância. Trazendo para a realidade da saúde, compreendemos as desvantagens sociais colocadas sobre mulheres cisgênero e transexuais”, declarou Sherydan. Dados da ONU (2017) mostram que no Brasil mulheres e meninas somam um terço dos usuários de drogas, sendo que elas são um em cada cinco beneficiados por tratamento especializado. “Na dependência química, a violência de gênero tem estreita relação com fatores como abuso sexual, vulnerabilidade social e uso de substâncias para lidar com experiências traumáticas”, aponta Sherydan, afirmando que é preciso pensar estratégias para romper com o paradigma patriarcal que prioriza o homem e exclui a mulher usuária de substâncias.

Autora assina livro no Espaço das Artes. Foto: Karen Moraes/ARPI

HIV/AIDS

Renata Azevedo, docente do Departamento de Psiquiatria da FCM, finalizou a palestra falando sobre os estigmas em HIV/AIDS e dependências químicas. No Brasil, o HIV contabiliza 370 mil mortes, além de 920 mil pacientes atualmente. Segundo Renata, mesmo com a grande cobertura de tratamento antirretroviral disponível no SUS, há quase 200 mil pessoas diagnosticadas que não se encontram em tratamento. Com relação aos estigmas carregados por esses pacientes, “pessoas com HIV são estigmatizadas pelo estado sorológico, mas também por outras características como uso de substâncias, trabalho sexual e as minorias ou identidades de gênero. É o estigma dentro do estigma, que tem sido uma barreira dentro do cuidado”.

Estudos apontam que um melhor cuidado com o uso de substâncias implica num impacto positivo na sobrevida de HIV. Por isso, é necessário procurar caminhos para o atendimento a esse usuário. “As atitudes estigmatizantes dos profissionais de saúde, como recusa do serviço, comprometem os esforços de prevenção e tratamento, com menor procura, diminuição da adesão, sofrimento e recaída do uso de substâncias. Nós todos precisamos fazer uma reflexão a respeito de práticas discriminatórias, principalmente nos serviços de saúde e políticas públicas, tentando produzir mudanças para tornar nossa sociedade consciente e empática à diversidade”, finalizou a docente.

Assista na íntegra ao vídeo com as palestras



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