Inflamação metabólica associada à microbiota intestinal é hipótese para a evolução da obesidade na história da humanidade
Publicado por: Camila Delmondes
03 de janeiro de 2025

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Na revista internacional Endocrine Reviews, o professor do Departamento de Clínica Médica, Mário Saad, em conjunto com o biólogo Andrey Santos, apresentam a metainflamação como hipótese científica para a evolução da obesidade na história da humanidade/Imagem: reprodução

Considerada uma epidemia global, a origem da obesidade é comumente entendida como o resultado da combinação de fatores genéticos e ambientais. Várias são as hipóteses científicas que explicam as origens evolutivas dessa comorbidade, tais como as condições econômicas ou o ambiente climático em que uma população vive. É nesse contexto que os pesquisadores da Faculdade de Ciências Médicas (FCM) da Unicamp, Mario Saad e Andrey Santos, apresentam a “metainflamação” como uma nova teoria capaz de explicar o surgimento da doença na história da humanidade. O artigo intitulado The Microbiota and Evolution of Obesity foi publicado em dezembro na revista Endocrine Reviews, uma publicação da Endocrine Society.

Segundo Mario Saad, a proposta do artigo é provocar o debate, uma vez ser raro o uso da Teoria da Evolução das Espécies proposta por Charles Darwin, nas pesquisas médicas sobre o mecanismo das doenças, muito embora os achados científicos ao longo do tempo corroborem os postulados apresentados pelo naturalista e geólogo britânico. Compreender a obesidade a partir da seleção gênica pode contribuir em uma melhor compreensão do aumento exponencial da obesidade no mundo todo, nos últimos 40 anos.

“Sem desprezar os fatores ambientais, que são determinantes, nós queremos melhor entender porque o componente genético da obesidade – que ficou ‘adormecido’ durante longo período da história da humanidade – é ativado na presença de um ambiente obesogênico, de falta de exercício, excesso de alimentação, dentre outros. Nossa hipótese é a de que os genes responsáveis pela obesidade obtiveram alguma vantagem evolutiva na história da humanidade”, explica.

No artigo de revisão, os autores apresentam contribuições e fragilidades de teorias anteriores nesse campo de investigação. A primeira delas, a Teoria do Genótipo Econômico proposta pelo geneticista inglês James Neel, sugere que em períodos anteriores ao desenvolvimento da agricultura, os indivíduos submetidos a longos períodos sem alimentos e com mais capacidade genética de estocar energia, tiveram mais chances de sobreviver, transmitindo às gerações futuras, genes favoráveis ao armazenamento de alimentos, que quando expostos ao ambiente obesogênico facilitam o desenvolvimento da obesidade.

Para Saad e Santos, essa teoria é muito fácil de contestar, uma vez que a prevalência da obesidade é diferente nas diversas populações do planeta, ainda que todas elas apresentassem no passado condições similares de escassez de alimentos. Estudos genéticos recentes, de acordo com os pesquisadores, também mostram que os defeitos em vias de armazenamento são raros nas populações descendentes.

A segunda teoria científica apresentada e discutida no artigo é aquela que analisa a migração do Homo sapiens para regiões mais frias do planeta. Para suportar as baixas temperaturas, propõe que a espécie humana teria desenvolvido genes para facilitar o gasto de energia, dificultando o desenvolvimento da obesidade, e aqueles que ficaram em regiões mais quentes não precisaram desenvolver mecanismos de aumentar o gasto energético, estando então mais predispostos à obesidade. Seria a hipótese termogênica. Embora os pesquisadores da FCM considerem a teoria interessante, eles afirmam que não há dados genéticos atualizados que a corroborem.

Uma terceira teoria investiga o passado ainda mais remoto da humanidade, há cerca de 1 milhão de anos, em que a vantagem evolutiva teria sido obtida por aqueles que conseguiram escapar dos predadores. Os genes selecionados contribuiriam para evitar a obesidade. Com a diminuição da pressão seletiva, no entanto, a partir da descoberta do fogo, teriam começado as primeiras mutações gênicas que favoreceriam à obesidade no futuro. Nesse caso, a falta de pressão evolutiva poderia favorecer a seleção de genes que predispusessem à obesidade. Entretanto, como a obesidade é muito prevalente hoje, o mais provável é que realmente os genes predisponentes à obesidade foram selecionados por pressão evolutiva e não falta dessa pressão. 

A Teoria da Metainflamação 

Estudiosos da obesidade há mais de 30 anos, Mario Saad e Andrey Santos explicam que na obesidade as vias inflamatórias estão ativadas, mas, ao contrário do que muitos acreditam, nem sempre é a obesidade a responsável por tais inflamações. Afirmam que, muitas vezes, a obesidade surge antes dos processos inflamatórios. Eles explicam como isso é possível:

“Começamos a observar que modelos animais com maiores chances de desenvolver processos inflamatórios engordavam mais. Ao investigar a inflamação metabólica sobe a ótica evolucionista, tivemos o ‘insight’ de que grandes epidemias poderiam ter sido decisivas no processo de seleção natural da humanidade. A peste negra, na Europa, exterminou dois terços da população. A colonização da América foi uma história de extermínio populacional. Em 100 anos, 90% das populações do México e Peru foram dizimadas por doenças infecciosas decorrente do contato com os colonizadores europeus”, contam.

Decorre do raciocínio dos pesquisadores da FCM, que todas as populações ancestrais, vítimas de grandes epidemias, selecionaram genes com mais chances de favorecer a obesidade. Assim, observam maior prevalência da comorbidade nas ilhas do pacífico, cujas as populações dessa região sobreviveram a grandes epidemias durante o século 19. O mesmo observam com os povos ancestrais, nativo americanos ou afrodescendentes, expostos a doenças infecciosas.

Reprodução do artigo The Microbiota and Evolution of Obesity, publicado na Endocrine Reviews em dezembro de 2024.

“A nossa teoria é a de que no passado, durante uma epidemia, os indivíduos sobreviventes provavelmente apresentavam um sistema imune com respostas mais robustas, e transmitiram esses genes mais resistentes aos seus descendentes, que contribuiriam para maior estoque de energia (conexão sistema imune e de armazenamento de energia), favorecendo o desenvolvimento da obesidade. Já sabemos que existe uma relação entre o sistema imune e a obesidade. Se você tem um sistema imune mais resistente, maiores são as chances de engordar”, explica Saad.

Dados da Organização Mundial de Saúde (OMS) mostram que cerca de 15 milhões de pessoas morreram durante a recente pandemia de Covid-19. A tragédia poderia gerar um planeta mais obeso, no futuro? Mario Saad pondera que as pandemias da atualidade são diferentes das que ocorreram em séculos passados e que hoje, graças ao avanço da ciência, muito menor é a quantidade de pessoas que morrem em decorrência dessas catástrofes de saúde. No entanto, ele observa que as pessoas que sofreram da modalidade mais longa da covid têm apresentando mais chances de engordar. Agora, os cientistas discutem se isso tem a ver com a inflamação metabólica causada pelo coronavírus, agente da doença. 

O papel da microbiota intestinal

Considerando o fato de que para acontecer uma mutação gênica com vantagem evolutiva a ser transmitida aos descendentes é necessário um intervalo de tempo entre 50 mil e 100 mil anos, os pesquisadores começaram a investigar a influência das variações genéticas da microbiota intestinal na complexa estrutura genética da obesidade, tornando-a mais poligênica do que se acreditava anteriormente.

Considerando que alguns indivíduos podem apresentar bactérias do intestino que favorecem o armazenamento de energia, eles começaram a pensar na Teoria do Genótipo Econômico, não a partir de genes humanos, mas dos genes das bactérias, que podem ter transmissão familiar. Outras constatações importantes que levaram em conta sobre a microbiota intestinal é que ela contribui na adaptação ao clima frio, com maior gasto energético, e na defesa contra agentes infecciosos. Também, que os genes das bactérias, assim como dos vírus, sofrem mutações muito mais rapidamente do que os genes humanos. 

“Incluindo os genes de bactérias que podem ser transmitidos por gerações, podemos revisitar as hipóteses do genótipo econômico e do genótipo termogênico, sem excluir a terceira hipótese. Mais importante, nossa hipótese da metainflamação, além de encontrar respaldo em alterações poligênicas em genes do sistema imune em obesos, também pode ser reforçada por uma microbiota que nos ajude na defesa contra infecções. Resumindo, incluindo os genes de bactérias da microbiota no arcabouço genético da obesidade, não precisamos excluir nenhuma teoria anterior e reforçamos a nossa da metainflamação”, explica Saad.

Em conclusão, os autores afirmam que para descobrir as origens evolutivas da obesidade são necessárias abordagens multifacetadas, que considerem a complexidade da história humana, as diferentes pressões evolutivas sobre a mesma tais quais o frio, a fome a sobrevivência às doenças infecciosas, e também a composição genética de diferentes populações e a influência da microbiota intestinal na genética do hospedeiro humano, que eles denominam por “genótipo estendido”. "Nesse sentido, provavelmente a obesidade é mais poligênica do que quando se pensa unicamente no genoma humano", finaliza o pesquisador e docente da FCM.



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