Eventos esportivos no Brasil chamam a atenção para o paciente lesado medular
Publicado por: Camila Delmondes
07 de outubro de 2015

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A realização da Copa do Mundo, em junho deste ano no Brasil, coloca em evidência uma antiga promessa científica: permitir que um paciente lesado medular volte a andar. É esperado para a ocasião que um tetraplégico levante-se de uma cadeira de rodas com a ajuda de um equipamento (exoesqueleto) para dar o chute de estreia no maior evento de futebol do mundo. A expectativa é grande e o desejo de voltar a andar é novamente colocado no foco das discussões de pacientes, pesquisadores, médicos, amigos e familiares. Dados do relatório “Diretrizes de atenção à pessoa com lesão medular”, divulgado pelo Ministério da Saúde em 2013, revelaram cerca de 10 mil novos casos ocorrendo no Brasil, anualmente.

Na opinião do bioengenheiro Alberto Cliquet Júnior, professor do Departamento de Ortopedia e Traumatologia da Faculdade de Ciências Médicas (FCM) e responsável pelo Laboratório de Biomecânica e Reabilitação do Aparelho Locomotor do Hospital de Clínicas (HC) da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), as pessoas devem aproveitar o cenário de grandes eventos esportivos no Brasil, tais quais, a Copa do Mundo de 2014 e os Jogos Olímpicos e Paralímpicos de 2016, para buscar mais informações sobre as pesquisas em andamento. Segundo Cliquet, é possível ao lesado medular sair da cadeira de rodas e, em alguns casos, até voltar a andar, sem que seja necessária a utilização de exoesqueletos.

Em dezembro do ano passado, Alberto Cliquet e os pesquisadores José Irineu Gorla, José Roberto Matos-Souza, Guilherme de Rossi, Roberto Schreiber, Layde Rosane Paim, Anselmo de Athayde Costa e Silva, Luis Felipe Castelli Correia de Campos, Eliza Azevedo, Karina Alonso e Wilson Nadruz Junior, receberam o Prêmio Saúde da Editora Abril, pela pesquisa multidisciplinar “A prática regular de esporte está associada à atenuação de alterações vasculares e cardíacas em indivíduos com lesão crônica da medula espinhal”, na categoria Esporte e Saúde, que reuniu pesquisas, ações e campanhas que incentivaram o estilo de vida ativa, e que contribuíram para derrubar as taxas de sedentarismo no Brasil, valorizando o esporte amador.

Em entrevista ao site da FCM, Cliquet respondeu diversas dúvidas relacionadas ao trauma na medula espinhal sofrido por milhares de pessoas a cada ano no mundo todo.

FCM – Qual a incidência e as causas mais comuns de trauma na medula espinhal no Brasil?

A cada hora, dois brasileiros se tornam paraplégicos ou tetraplégicos no País. Os acidentes automobilísticos, os ferimentos por armas de fogo e por mergulho em água rasa, e também as sequelas deixadas por tumores, estão entre as causas mais comuns dos traumas.

FCM – Como o trauma na medula é identificado?

A lesão medular é percebida através do exame de ressonância magnética, mas já no local do acidente o paciente é imobilizado e os médicos verificam se ele teve perda de sensibilidade ou se está hipersensível a dor. A coluna é apalpada com o intuito de verificar se houve ou não o deslocamento de vértebras. Ao ser constatada a lesão no hospital, o paciente é submetido à cirurgia para estabilizar a vértebra.

FCM – O que acontece após a cirurgia?

Depois que a cirurgia estabiliza a vértebra, o paciente passa por um período de aproximadamente três meses sem apresentar nenhum reflexo. Dependendo do tipo de lesão, as mais baixas, por exemplo, o paciente não terá nenhum reflexo. O prognóstico com o tipo de lesão só poderá ser dado depois desse período, quando voltam os reflexos. Aos poucos, o paciente se tornará espástico, ou seja, começará a apresentar contrações involuntárias.

FCM – Alguns pacientes reclamam dessas contrações involuntárias. É possível cessá-las?

Os movimentos involuntários, também chamados de espasticidade, nada mais são do que os neurônios disparando sinais de maneira desorganizada. Se você mata essa possibilidade, também mata a possibilidade de recuperação dos movimentos.

FCM – Quais são os cuidados que um paciente com lesão na medula deve ter?

O maior cuidado que um paciente lesado medular deve ter consigo mesmo é evitar fraturas durante as transferências que realizará da cadeira de rodas para a cama ou para o banheiro, por exemplo. Isso porque, muito rapidamente, cerca de um ano e meio após o trauma, ele terá uma osteoporose duas vezes maior do que uma mulher desenvolverá durante toda a vida. Se possível, o paciente deve ser recebido em um centro de reabilitação que ensine cuidados básicos, que incluem não apenas a maneira correta de se transferir da cadeira de rodas, como também recomendações sobre como controlar o músculo que regula o ato de urinar. Outro aconselhamento importante ensinado em centros de reabilitação é que o lesado medular não pode ficar sentado ou deitado por muito tempo. Ficando muito tempo deitado, o paciente pode chegar até a desenvolver uma pneumonia, pois os pulmões não funcionarão adequadamente se ele permanecer muito tempo nessa posição. Ficando muito tempo sentado ele pode formar escaras pelo corpo.

FCM – Como familiar ou amigo, devo estimular que o paciente fique de pé?

Jamais tente colocar um paciente em pé logo após a lesão. Na ânsia de estimular a reabilitação do paciente, muitas vezes os próprios familiares acabam prejudicando ainda mais a condição do indivíduo. O que se tenta fazer após a lesão é colocar o paciente em pé com o auxílio de muletas, andadores ou barras paralelas. O problema é que um em cada cinco pacientes lesados medulares são acometidos pelo que chamamos de siringomielia pós-traumática. Na região onde morreu o neurônio, às vezes são formadas espécies de cicatrizes e o espaço é preenchido pelo líquido cefalorraquidiano, que também envolve o cérebro e a medula. Ao tentar se levantar de qualquer jeito, o paciente pode aumentar a pressão intra-abdominal, fazendo com que o líquido suba, matando outros neurônios, e piorando ainda mais a lesão. No início da lesão o paciente não pode, de maneira alguma, fazer esforço dos membros superiores, com o risco de agravar ainda mais o seu estado.

FCM – Como é o acesso da população aos centros de reabilitação?

Esse é um problema sério. Há vinte anos demorava cerca de dois anos para que um paciente tivesse a sua primeira consulta. Atualmente, são quase três anos de espera. Para onde o paciente vai nesse período para obter informações sobre cuidados básicos, osteoporose, transferência e etc.? Aqui no ambulatório conseguimos atender no máximo 100 pacientes, não mais do que isso, e existe fila de espera.

FCM – Quando começa o processo de reabilitação para esse paciente que sofreu um trauma na medula espinhal?

Saindo da fase sem reflexos, também conhecida por choque medular, e controlando a espasticidade, o paciente entra em condições de reabilitação. Esse processo de estabilização dura cerca de um ano e meio. Após esse período, o paciente pode procurar laboratórios como o nosso, por exemplo.

FCM – Qual o cenário das pesquisas que visam melhorar o quadro dos pacientes com lesão na medula espinhal?

A maior parte das pesquisas realizadas no Brasil com pacientes lesados medulares estão focadas na locomoção por estímulos aprendidos pelo sistema nervoso. Atualmente, conseguimos fazer com que os pacientes andem artificialmente, melhorando a qualidade óssea, a capacidade pulmonar, cardiovascular e a circulação. Nosso objetivo final é descobrir como gerar padrões de movimentos que possam ser reaprendidos pelo sistema nervoso. Estimulamos a medula e conseguimos que os pacientes deem alguns passos.

FCM – É possível voltar a andar?

A recuperação total dos movimentos ainda é ficção. Em geral, todos os pacientes com lesão medular têm sensibilidade e realizam alguns movimentos, mas são poucos os que conseguem voltar a andar. Estamos tentando descobrir através de uma série de protocolos, quais pacientes podem se beneficiar das nossas pesquisas.

FCM – Na Copa do Mundo de 2014 existe a possibilidade de um tetraplégico ficar de pé para dar o pontapé inicial na competição...

As pesquisas com exoesqueletos não são novidade e alguns experimentos já foram feitos na década de 70. Os exoesqueletos atuais pesam entre 25 e 30 quilos e neles não há estímulos dos nervos receptores porque todos os sinais são enviados para o esqueleto externo constituído por ferro, alumínio. O grande temor nesse caso é a ocorrência de fraturas. Se um paciente com lesão medular cai com um equipamento desses, não se levanta nunca mais.

FCM – É possível implantar uma espécie de chip no cérebro, de maneira que o paciente comande os movimentos pelo pensamento?

Pesquisas desse tipo atualmente estão proibidas. Testes com macacos nos Estados Unidos resultaram em hemorragias e infecções nos animais testados. Ainda não vejo a possibilidade de implantar nada no cérebro de um tetraplégico.

FCM – Como estão as pesquisas com células-tronco?

As pesquisas em andamento que investigam o papel das células-tronco na recuperação dos pacientes são essenciais, mas ainda foram poucas as contribuições no sentido de fazer um tetraplégico ou paraplégico voltar a andar. Essa é uma área que precisa ser estudada, mas não acredito que em curto prazo ela possa encontrar uma solução para o problema. Nesse momento, o que de fato a gente tem, é a geração de movimentos baseado no aprendizado pelo sistema nervoso.

FCM – O Brasil vive um momento de grande efervescência esportiva com a realização da Copa do Mundo, dos Jogos Olímpicos e das Paralimpíadas. A prática esportiva é acessível para a maioria dos casos de paraplegia e tetraplegia?

Acredito que sim, mas essa é uma atividade que infelizmente pode depender muito da condição socioeconômica do indivíduo. De todo modo, é imprescindível que o paciente espere cerca de um ano e meio após a lesão para chegar ao final desse período em condições de praticar algum esporte. Ele precisa ter sido atendido por um centro de reabilitação e ter recebido os cuidados e o acompanhamento, necessários.



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