Clínica Ampliada é destaque na FCM durante lançamento conjunto de livros pelas editoras Hucitec e Voz de Mulher
Publicado por: Camila Delmondes
26 de outubro de 2022

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Na última quarta-feira, 19, o Espaço das Artes da Faculdade de Ciências Médicas (FCM) da Unicamp recebeu o lançamento de dois livros. Rubens Bedrikow, docente do departamento de Saúde Coletiva da FCM é autor de “Reflexões e crônicas sobre a Clínica Ampliada”, da Hucitec Editora. Já a aluna do 4º ano de Medicina, Fernanda Germano, assina a obra “Cegueiras na calçada”, pela editora Voz de Mulher.

Rubens contou a história do livro, que reúne reflexões e crônicas sobre sua atuação desde 2002, em quatro centros de saúde que trabalhou em Campinas. “Quando cheguei a Campinas, em 2001, estavam fervilhando debates sobre como fazer saúde da família. Dentro disso, marcou muito a proposta de fazer uma Clínica Ampliada, aquela em que você coloca o sujeito na frente, antes da doença. A Clínica Ampliada me deu prazer em ser médico”, declarou.

Rubens Bedrikow assina livro. Foto: Mercedes Santos/ARPI
Fernanda Germano autografa sua obra. Foto: Mercedes Santos/ARPI

Ele também comentou sobre a experiência do lançamento conjunto dos livros. “Gratidão em compartilhar esse espaço com a Fernanda, parceira no trabalho que fazemos no projeto de extensão na Vila Paula. Ela faz questão de dedicar o sábado para isso, e, juntamente com a Liga de Pediatria, faz um trabalho lindo sobre a transição entre ser criança e adolescente”, elogiou. “É uma honra para nós usarmos esse espaço de arte para juntar as pessoas”, finalizou, agradecendo ao corpo docente, discente e técnico-administrativo pela presença.

Fernanda declarou que a ideia do romance surgiu a partir do contato que teve com uma paciente, ainda no primeiro ano da faculdade, durante trabalho da disciplina de Ações de Saúde Pública. “Adélia me afetou de um jeito que não tinha entendido no momento. O professor Sérgio Carvalho orientava-nos a expressar o que sentíamos depois das visitas domiciliares. Fui escrevendo ao longo de um ano. Em 2021, revivi esses textos que estavam esquecidos, e, diante de uma situação particular de violência, encontrei alguma coisa semelhante entre mim e essa mulher. Então, decidi reunir os textos no livro”, disse a estudante.

A discente explicou que apesar de ser um livro de ficção, a obra foi pensada dentro do contexto da Medicina, trazendo de alguma maneira a Clínica Ampliada. “Ninguém colocava a Adélia em primeiro plano: sempre era a diabetes, o AVC sofrido; mas nunca era a violência que ela sofria pelo marido, ou a dificuldade para cuidar dele doente. Tudo isso conversa muito com as crônicas do professor Rubens, apesar de eu não ter a experiência dele. Penso que uma obra complementa a outra”, finalizou Fernanda, agradecendo aos presentes.

Público acompanha lançamento dos livros. Foto: Mercedes Santos/ARPI

Confira os trechos lidos pelos autores:

Crônica “Piranha”, de Rubens Bedrikow:

“As manhãs de outono costumam ser bonitas, mesmo durante a triste pandemia. Céu muito azul, sem nuvens e temperatura agradável. Estávamos na ocupação, onde todas as casas são de madeira e as ruas estreitas e tortuosas. O senhor Valdimiro nos aguardava sentado em uma cadeira, olhando para a sua casa. Outras duas cadeiras estavam destinadas a mim e a aluna do 4º ano de medicina. Consultório ao ar livre, sombreado e silencioso. Condições ideias para ouvir sua história de vida e de suas doenças. Aquele homem pálido, emagrecido, com pouca massa muscular perdera completamente a visão há cerca de cinco meses. Custei a acreditar no que li na carteira de identidade: aquele "idoso" era cinco anos mais novo que eu!

A catarata atingira os dois olhos. A perda de transparência do cristalino deixava claro a falência do sistema de saúde no controle do diabetes e no tratamento da doença ocular comum entre pessoas portadoras dessa doença e/ou tabagistas, como ele.

(...)

Enquanto eu escrevia o caso, já em casa, para posteriormente compartilhar com a equipe de saúde, assistia a um documentário na televisão. Em um aquário norte-americano, uma equipe de veterinários dedicava-se a preparar um pinguim chamado Charlie para a cirurgia de catarata. Impossível não se questionar sobre os valores presentes na nossa sociedade ocidental. Nestas primeiras décadas do século XXI, aquele pinguim tinha mais chance de chegar à cirurgia de catarata do que aquele simpático, educado e resignado cidadão pernambucano. Um misto de tristeza, revolta e inconformismo invadiu-me. No entanto, foi a cirurgia de uma piranha residente no mesmo aquário que me impeliu a escrever esta crônica”.

Professor Rubens lê crônica que encerra seu livro. Foto: Mercedes Santos/ARPI

Trecho de “Cegueiras na calçada”, de Fernanda Germano:

“E foi por isso que Adélia resolvera que, naquela manhã, a calçada não seria varrida: porque varrer a calçada era se conformar com a ausência do Antônio, era se conformar que, para uma velha abandonada à sorte desde o nascimento, cega dos dois olhos para as afabilidades das letras e da vida, o destino era somente morar e varrer a calçada, para, quinze minutos depois, fazê-lo novamente, passar raiva, enfurecer-se, não poder xingar ou falar um palavrão, pois a neta havia de ter bons exemplos - se não em casa, então, onde? Adélia estava sufocada; presa em si mesma, nas míseras possibilidades que ela própria concedia a si; e não varrer a calçada, na véspera do aniversário de morte do Antônio, era um sinal de protesto: o grito de Adélia que ninguém nunca parou para ouvir.

(...)

E tinha essa mania não saudável de, sentada assim, quietinha, com as mãos nas coxas murchas de tanto já terem corrido para baixo e para cima do morro, sentir-se ridícula. Pensava que não podia tentar fugir do que achavam que ela era, pois, se assim fosse, decepcionaria. E o que menos gostava de fazer era decepcionar; pensava que não podia aparecer, que quanto mais invisível fosse, melhor para todos - mas pior para si, com certeza. Se estava bom para eles que fosse invisível, quietinha, assim, sentada no sofá da garagem, por que mudar? Por que modificar a ordem natural das coisas se assim estava bom à maioria? E continuava se achando ridícula.

- Será que algum dia alguém vai me achar?”

Fernanda Germano lê trecho de "Cegueiras na calçada". Foto: Mercedes Santos/ARPI

 



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