Todas as informações básicas para o desenvolvimento do ser humano estão no DNA que compõe o genoma. Agora, imagine que o genoma é uma maçã e que em apenas uma pequena fatia se concentram as informações para a síntese de todas as proteínas que compõem e permitem o funcionamento do organismo humano. É também nessa pequena porção, chamada de exoma, que se encontram a maioria das mutações genéticas causadoras de doenças no homem. O que você faria se pudesse saber quais doenças poderia ter no futuro, dentre elas alguns tipos de câncer, doenças cardíacas ou suscetibilidade a efeitos colaterais de medicamentos?
Na Unicamp, isso agora é possível. Por enquanto, para um grupo restrito de 100 pacientes que participam de projetos de pesquisa que incluem o sequenciamento do exoma. Esses pacientes serão acompanhados no recém-criado Ambulatório de Aconselhamento Genômico, uma iniciativa do Departamento de Genética Médica da Faculdade de Ciências Médicas (FCM).
A criação do Ambulatório foi motivada pelo aparecimento de novas tecnologias de pesquisa, em especial as que permitem o estudo do exoma humano pela “leitura” ou sequenciamento de todas as bases do DNA que o compõem, – e pela percepção de um grupo de pesquisadores e professores, cientes dos riscos e dilemas éticos relacionados à aplicação desses novos recursos diagnósticos.
“Quando você faz o sequenciamento do DNA, você obtém informações para o diagnóstico de doenças que não estão relacionadas só com o motivo da consulta do paciente. Ao sequenciar o gene que está causando epilepsia, por exemplo, posso ter informações de genes de predisposição para outras doenças e agir precocemente e preventivamente nos casos possíveis de intervenção médica”, disse a médica geneticista Íscia Lopes Cendes.
A partir do consentimento do paciente para que os pesquisadores rastreiem possíveis mutações genéticas, 15 tipos de câncer de origem familiar, 12 condições que implicam em risco cardiovascular, como a arritmia que pode causar a morte súbita e a suscetibilidade à reação a anestésico e relaxante muscular – chamada de hipertermia maligna – poderão ser diagnosticados. Os pesquisadores chamam isso de “achados incidentais”.
“Dos 42 pacientes atendidos até agora, apenas dois não quiseram saber se tinham propensão para outras doenças, além daquela que determinou o atendimento ambulatorial no Hospital de Clínicas da Unicamp”, disse a médica Joana Prota, responsável pela linha de pesquisa no projeto Cepid Brainn, que tem apoio da Fapesp.
A médica geneticista Antonia Paula Marques de Faria, professora do Departamento de Genética Médica da FCM e chefe do Ambulatório de Aconselhamento Genômico, disse que é a favor de aplicar essa tecnologia, mas com responsabilidade. “Isso não é um horóscopo genético, mas sim um instrumento poderoso que implica em questões éticas. A orientação ao paciente é fundamental. Se não for bem feita, pode ser um estigma para o resto da vida do paciente e da família também”, disse.
A proposta do Ambulatório de Aconselhamento Genômico é ambiciosa. Se no primeiro momento o atendimento é restrito a pacientes do Hospital de Clínicas da Unicamp, a médio prazo poderá se estender a outros pacientes do Sistema Único de Saúde (SUS). “Pretendemos criar a figura do aconselhador genômico, treinar médicos-residentes, oferecer mestrado profissionalizante e abrir o leque de atuação dentro da medicina genômica. Isto é ainda inédito no país”, disse Íscia.
Sequenciamento – O paciente, ao ser atendido em ambulatórios do HC, percorre o caminho normal para o diagnóstico de sua doença. Caso o médico responsável perceba que a condição é de origem genética ou de difícil diagnóstico e passível de ser detectada pelo sequenciamento do exoma, o paciente pode ser encaminhado ao Ambulatório de Aconselhamento Genômico. Já no ambulatório, o processo é iniciado com a orientação ou aconselhamento pré-teste, para que, devidamente esclarecido, o paciente (ou seu responsável legal), decida quanto à realização do exame. O sequenciamento do exoma é feito no Laboratório de Genética Molecular e os dados são transferidos para o Laboratório de Biologia Computacional e Genética Estatística, ambos ligados ao Departamento de Genética Médica.
Se o paciente quiser saber se ele tem predisposição também para as demais doenças que são incluídas nos “achados incidentais”, o teste é feito, paralelamente à pesquisa da condição que motivou a consulta. Caso contrário, apenas o gene causador da doença é pesquisado. A partir dos resultados, começa uma nova etapa, que corresponde ao aconselhamento genômico pós-teste. O sigilo é total. O teste não tem custo algum para o paciente, já que é realizado no âmbito de projeto de pesquisa do Cepid Brainn, coordenado pelo médico e pesquisador Fernando Cendes, do Departamento de Neurologia da FCM da Unicamp, com financiamento da FAPESP.
“No caso do presente projeto em andamento, a ênfase é dada às doenças neurológicas, principalmente as epilepsias, mas é possível que no futuro, com novos financiamentos de pesquisa, outras doenças possam ser incorporadas à pesquisa. Além disso, é importante enfatizar que em relação aos achados incidentais que são pesquisados, seguimos rigorosas recomendações internacionais sobre quais doenças devem ser pesquisadas. Assim, somente àquelas doenças nas quais alguma conduta médica pode ser tomada, seja prevenção ou tratamento, são pesquisadas”, enfatizou Iscia.
“O genoma humano é um patrimônio da humanidade, mas também é a informação mais íntima de uma pessoa. Portanto, cabe a essa pessoa, em virtude de sua autonomia, decidir quanto a se informar sobre o próprio genoma. A decisão é sempre do paciente”, reforçou Antonia Paula.