Testes realizados em mais de mil amostras de cocaína aprendidas de janeiro a maio deste ano, nas cidades de Campinas, Sumaré, Limeira e Americana, comprovam que 10% delas estão contaminadas com o medicamento levamisol. O levamisol é um medicamento banido dos Estados Unidos e alguns países da Europa, devido aos seus efeitos colaterais, como diminuição dos glóbulos brancos - que são células de defesa do organismo -, manchas pretas na pele conhecidas por vasculite, inchaço das glândulas e feridas na boca e ânus. No Brasil, ele é usado no tratamento veterinário e humano contra vermes. A descoberta foi feita por pesquisadores do Centro de Controle de Intoxicações (CCI) da Faculdade de Ciências Médicas (FCM) da Unicamp, em parceria com os Institutos de Criminalísticas de São Paulo e Campinas.
Os dados foram apresentados XVII Congresso Brasileiro de Toxicologia, ocorrido no final de junho, na cidade de Ribeirão Preto e rendeu ao farmacêutico e professor do curso de Farmácia da Unicamp, Rafael Lanaro, o prêmio de melhor apresentação oral da área de toxicologia social e forense. A Polícia Federal já havia identificado a presença deste medicamento nas drogas apreendidas nos aeroportos internacionais, mas, segundo Rafael, autor principal do trabalho, é a primeira vez no Brasil que o uso do levamisol é identificado em drogas apreendidas com usuários nas ruas das cidades da macrorregião de Campinas.
“Esta descoberta muda os rumos do atendimento de urgência em casos de intoxicação por cocaína e outras drogas possivelmente contaminadas com o medicamento e a dinâmica de investigação de uso de cocaína”, disse o especialista em toxicologia analítica do CCI.
Segundo Rafael, para se produzir um quilo de cocaína, são necessários aproximadamente 100 quilos de folhas da planta Erytroxilum coca. Hoje é cada vez mais comum encontrar-se amido, talco, cimento, giz, leite em pó, anestésicos e até mesmo medicamentos misturados ao pó da cocaína. A mistura destas substâncias serve para aumentar o volume da droga, baratear o custo e potencializar os seus efeitos. Duas técnicas foram utilizadas pelos pesquisadores para se chegar à identificação do medicamento: a cromatografia em camada delgada para a triagem dos compostos e a cromatografia gasosa acoplada à espectrometria de massas para a confirmação das substâncias presentes nas amostras de cocaína encaminhadas para exame pericial.
“A espectrometria de massas hoje é ferramenta imprescindível nos laboratórios de toxicologia, uma vez que ela fornece de forma inequívoca a ‘impressão digital’ de cada composto químico, podendo assim confirmar quais as substâncias presentes em determinadas amostras. No presente trabalho, a partir do espectro de massas gerado, foi possível fazer a confirmação e quantificação do levamisol nas amostras analisadas”, disse.
De acordo com Rafael, há três hipóteses para a adição do levamisol à cocaína: por ser um pó barato e cristalino, ele dá uma aparência mais pura à droga; por ser estimulante, ele aumenta o efeito da dopamina no sistema nervoso central e estudos internacionais mostram que o levamisol, dentro do organismo, se transforma em aminorex, um composto com efeitos semelhantes aos anfetamínicos.
“Na terapia antiparasitária em humanos a dose única de levamisol é de 150 miligramas para adultos. Cada grama de cocaína analisada tinha até 6% de levamisol na composição. Isso equivale entre 70 e 80 miligramas. O usuário crônico de cocaína pode usar, em média, de cinco a seis cápsulas por dia. A quantidade de levamisol a que ele vai estar exposto é bem maior quando comparado ao uso terapêutico e isto pode levar, em poucas semanas, à obstrução dos vasos sanguíneo, necrose e até possivelmente amputação de um membro, por exemplo”, explicou.
Para o médico legista e atendimento de urgência em Prontos Socorros, o quadro clínico de pacientes muda. Se antigamente eles estavam acostumados a se deparar com um infarto ou acidente vascular cerebral (AVC), manchas escuras pelo rosto, mãos e pés podem indicar intoxicação por cocaína contaminada com levamisol. Nos últimos três anos, disse Rafael, a intoxicação e morte de jovens por cocaína vêm aumentando em Campinas. Acostumado a atender casos de urgência de madrugada, o farmacêutico faz um alerta sobre o dito popular que diz que você tem que experimentar a droga para saber seu efeito e que, na primeira vez, não vai causar nenhum problema.
“Chega o final de semana, estes jovens consomem cocaína sem saber qual é a pureza da droga e têm uma overdose. Há um ano uma jovem de 17 anos, no dia de sua festa de aniversário, aproveitou que os pais tinham viajado e usou, pela primeira vez, cocaína e LSD. Ela chegou aqui em parada cardíaca e veio a falecer minutos depois”, relatou.
O Centro de Controle de Intoxicações (CCI) é ligado à FCM da Unicamp e dá apoio assistencial ao Hospital de Clínicas (HC) da Unicamp. Trata-se de um serviço multiprofissional com a participação dos Departamentos de Clínica Médica, Pediatria, Patologia Clínica, Medicina Preventiva e Social e Farmacologia da FCM e dos Serviços de Enfermagem e da Unidade de Emergência Referenciada do HC/ Unicamp. Iniciou as suas atividades em 1982 e se localiza no 3º pavimento do bloco F3 do HC. Possui uma sala de atendimento 24 horas na Unidade de Emergência Referenciada (UER) do hospital, acervo bibliográfico, área de consolidação e registro de dados, laboratório de toxicologia, sala de reuniões, sala de docentes e secretaria numa área física de cerca de 160 m2. A equipe de trabalho do CCI é composta por cinco médicos, quatro enfermeiras, três farmacêuticos bioquímicos, um biólogo colaborador, um auxiliar de laboratório, dois funcionários administrativos e 42 estagiários, alunos dos cursos de Medicina, Enfermagem e Farmácia da FCM da Unicamp. As principais causas de intoxicação atendidas pelo CCI são por medicamentos, agrotóxicos, produtos químicos e drogas de abuso. O telefone de contato 24 horas para emergências é (19) 3521-7555 ou 3521-6700.
Texto e fotos: Edimilson Montalti - ARP-FCM/UNICAMP