Plasma

Testes com o plasma de pessoas que se curaram da Covid-19 avaliam potencial como tratamento - terapias com esse componente sanguíneo já eram usadas para outras doenças, como no Hospital das Clínicas da USP

Léo Ramos Chaves

O Centro de Hematologia e Hemoterapia da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) deverá iniciar em breve a coleta de plasma sanguíneo de pessoas que se curaram da Covid-19, infecção respiratória causada pelo novo coronavírus (Sars-CoV-2), e usá-lo em um protocolo de pesquisa envolvendo o tratamento de indivíduos com a doença no Hospital de Clínicas da Faculdade de Ciências Médicas (FCM) da universidade e também em outros hospitais da região. Se os resultados forem positivos, essa poderá ser uma opção para tratar doentes em estágio moderado da doença.

O plasma é a parte líquida do sangue e constitui cerca de 60% de seu conteúdo total — os outros componentes são os glóbulos brancos, as células vermelhas e as plaquetas. Seu uso tem sido considerado uma possível estratégia para fornecer os anticorpos necessários para aqueles que ainda não os têm em níveis capazes de protegê-los da Covid-19. Embora não seja um processo isento de riscos, estima-se que a transfusão de plasma possa levar à diminuição da carga viral no organismo e à melhora dos sintomas, ou à evolução clínica dos pacientes. Na avaliação da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), “a estratégia pode estar rapidamente acessível, à medida que exista um número suficiente de pessoas que se recuperaram da doença e que possam doar o plasma contendo imunoglobulinas que reajam contra o vírus Sars-CoV-2”.

O projeto coordenado por médicos e pesquisadores do Hemocentro da Unicamp foi submetido para análise da Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (Conep) no dia 3 de abril, pouco tempo depois de a agência regulatória de alimentos e medicamentos dos Estados Unidos, a FDA, ter autorizado o uso da terapia, em caráter experimental, em pessoas infectadas com o vírus em estado grave — aquelas internadas em unidades de terapia intensiva (UTI), com quadros de insuficiência respiratória, que, por isso, só conseguem respirar com a ajuda de aparelhos.

Se aprovada no Conep, a instituição será mais uma universidade pública brasileira a testar essa estratégia no tratamento de pessoas com a Covid-19 no país. No dia 4 de abril, um consórcio envolvendo os hospitais Albert Einstein e Sírio-Libanês e a Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FM-USP) recebeu autorização da comissão para iniciar os testes com plasma em pessoas infectadas com o novo coronavírus em estado grave. No dia 6 de abril, o Hemocentro de Ribeirão Preto também iniciou o processo de coleta do plasma sanguíneo de pacientes curados da Covid-19 para tratamento de indivíduos em estado crítico da doença no Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da USP.

A ideia dos médicos e pesquisadores do Hemocentro da Unicamp, no entanto, é diferente. O objetivo é analisar a eficácia da estratégia no tratamento de pessoas com quadro clínico moderado da doença, isto é, que ainda conseguem respirar sem a ajuda de aparelhos. “Vamos montar dois grupos”, explica Marcelo Addas Carvalho, médico do Hemocentro da Unicamp e um dos coordenadores do projeto. “Um deles receberá o plasma sanguíneo com anticorpos específicos para Sars-CoV-2 enquanto o outro, usado como grupo controle, receberá plasma sem anticorpos para o novo coronavírus.” Eles pretendem comparar a evolução do quadro clínico dos indivíduos nos dois grupos e, ao mesmo tempo, tentar conter a deterioração das condições de saúde dessas pessoas, evitando sua internação na UTI dos hospitais. O número limitado de vagas de terapia intensiva é um dos principais gargalos do sistema de saúde ao lidar com a quantidade crescente de pacientes com a Covid-19.

Terapia antiga
O uso de plasma sanguíneo no tratamento de doenças não é novo. Pelo contrário. Essa estratégia terapêutica já foi empregada várias vezes ao longo da história em surtos de outras infecções respiratórias, inclusive em epidemias recentes causadas por outros vírus da família coronavírus, como as epidemias da Síndrome Aguda Respiratória (Sars), em 2003, e a da Síndrome Respiratória do Oriente Médio (Mers), em 2012. A terapia também foi testada em surtos de sarampo e caxumba — antes da existência de vacinas para essas doenças —, além do surto de Ebola, em 2014, e da pandemia de gripe espanhola, em 1918.

No caso da pandemia de Covid-19, estudos publicados nas últimas semanas destacaram o potencial terapêutico da transfusão de plasma sanguíneo em indivíduos infectados pelo Sars-CoV-2 — ainda que esses trabalhos, em sua maioria, envolvam pequenas amostras de pessoas. O mais recente, publicado dia 27 de março no Journal of the American Medical Association (JAMA), envolveu cinco pessoas com idade entre 36 e 65 anos. Todas tinham Covid-19, apresentavam quadro graves de pneumonia, alta carga viral e respiravam com a ajuda de aparelhos.

Os pacientes receberam plasma com anticorpos específicos para Sars-CoV-2 de 10 a 22 dias após terem sido internados em um hospital de Shenzhen, na China. Os doadores, de 18 a 60 anos de idade, haviam se recuperado da infecção e aceitaram fazer a doação sanguínea para a pesquisa. Três dos cinco pacientes que receberam o plasma voltaram a respirar sem a ajuda de aparelhos duas semanas após a transfusão e receberam alta após cerca de 50 dias no hospital. Os outros dois estavam em condição estável 37 dias após a transfusão. Como eles também receberam medicamentos antivirais, não se sabe qual terapia teria sido mais determinante para a melhora de seu quadro clínico.

Riscos
Em Campinas, a estratégia da equipe de médicos e pesquisadores do Hemocentro da Unicamp será a de entrar em contato com pessoas que se curaram da Covid-19 após tratamento no Hospital de Clínicas da universidade e em outros hospitais da região e convidá-las para a doação. “A coleta de plasma será feita em pacientes curados 30 dias após o desaparecimento de todos os sintomas”, explica a médica Carolina Costa-Lima Salmoiraghi, uma das coordenadoras do projeto, que, além de Carvalho, também envolve o médico Bruno Deltreggia Benites. Feita essa primeira triagem, os doadores serão submetidos à aférese, procedimento no qual um equipamento automatizado separa o plasma dos outros componentes do sangue, que retornam novamente para o doador. Segundo Costa-Lima, cada pessoa poderá doar 600 mililitros de plasma, “o suficiente para atender até três pacientes infectados com Sars-CoV-2”.

As transfusões de plasma convalescente costumam ser seguras e bem toleradas pela maioria das pessoas submetidas a esse procedimento. Ainda assim, é preciso cautela em relação ao seu uso no tratamento da Covid-19. Além dos estudos disponíveis não serem suficientes para atestar a eficácia da terapia contra a doença, há o risco, ainda que relativamente raro, de as pessoas que receberam o plasma terem reações alérgicas e outros eventos adversos. Uma das mais graves, nesses casos, é a lesão pulmonar aguda relacionada à transfusão (Trali), caracterizada por insuficiência respiratória aguda, edema pulmonar e baixa concentração de oxigênio no sangue arterial.

A Trali pode ocorrer durante ou até seis horas após a transfusão do plasma. As evidências disponíveis sugerem que ela pode ser desencadeada pela transfusão de plasma proveniente de doadoras mulheres que tiveram filhos, que contêm anticorpos específicos às vezes prejudiciais a outras pessoas. “Para evitar esse risco”, explica Costa-Lima, “iremos focar apenas em doadores homens e em mulheres que nunca tiveram filhos”.

Artigos científicos
SHEN, C. et al. Treatment of 5 critically Ill patients with Covid-19 with convalescent plasma. Journal of the American Medical Association. mar. 2020.
CASADEVALL, A. & PIROFSKI, L. The convalescent sera option for containing Covid-19. The Journal of Clinical Investigation. mar. 2020.

Este texto foi originalmente publicado por Pesquisa FAPESP de acordo com a licença Creative Commons CC-BY-NC-ND. Leia o original aqui.