As gerações mais jovens herdarão uma biosfera profundamente modificada pela ação humana. O grande desenvolvimento científico e tecnológico dos últimos dois séculos e meio resultou em inegáveis benefícios para a humanidade. Na área da saúde, a redução da mortalidade infantil e o aumento da expectativa de vida possibilitaram o aumento exponencial da população. A espécie Homo sapiens passou a dominar o planeta, com mais de sete bilhões e meio de indivíduos. As modificações causadas pelas ações da humanidade na composição física do planeta foram intensas a ponto de caracterizar, de acordo com a proposta do geólogo Paul Crutzen, uma nova época geológica: o Antropoceno.
O crescimento tecnológico, científico e populacional, no entanto, apresenta novos desafios à humanidade. Sua base material tem sido o uso intensivo de energia, proveniente, em grande parte, da queima de combustíveis fósseis, como o carvão mineral e o petróleo. Este processo libera quantidades imensas de dióxido de carbono (CO2) na atmosfera. O acúmulo de CO2 causa retenção do calor do sol, caracterizando o chamado “efeito estufa”. O resultado mais imediatamente perceptível é o aumento da temperatura média da Terra, denominado Aquecimento Global, incontestavelmente associado à ação humana.
Desde 1970, a temperatura média do planeta elevou-se em 0,8 oC. É plausível considerar que este processo tenda à aceleração, pois mais da metade da massa de carbono foi liberada na atmosfera apenas nas últimas três décadas. Modelos elaborados por organismos internacionais estimam que ao final do século XXI este aumento poderá se estabelecer entre 2 oC e 4,8 oC, a depender da escala de implantação de medidas globais de controle de emissões de CO2. Seus efeitos já começam a afetar, em escala planetária, os avanços obtidos na saúde de crianças e adolescentes nas últimas décadas.
O agravo sanitário mais bem documentado do aquecimento global é o aumento da incidência e da distribuição geográfica de doenças associadas a vetores.
O aumento da temperatura associa-se ao ritmo acelerado e desordenado de urbanização, à alta mobilidade populacional e ao controle deficiente dos vetores, por descaso com medidas básicas de saúde pública. Infecções emergentes e antigas, como dengue, febre amarela, zika, chikungunya e malária suscitam intensa mobilização de recursos materiais e humanos. A epidemia de zika no Brasil, entre 2015 e 2016, resultou no nascimento de centenas de crianças com malformações congênitas, principalmente do sistema nervoso central. O custo, em termos de sofrimento individual, familiar e social, foi altíssimo. E não há indícios de que tais doenças sejam controladas a curto prazo. As projeções para os diversos cenários de aumento de temperatura prevêem grande expansão de espécies de mosquitos vetores adaptados aos ambientes urbanos, como Aedes aegipty e Aedes albopictus, atingindo também áreas temperadas da América do Norte e da Europa.
Outros produtos da combustão de substâncias de origem fóssil, como material particulado e ozônio, dispersam-se na atmosfera na forma de poluentes. A grande maioria dos municípios do Estado de São Paulo apresenta, com frequência, níveis de materiais particulados e ozônio bastante superiores aos considerados aceitáveis pela Organização Mundial da Saúde (OMS). Tal problema é particularmente grave na região de Paulínia, sede de um importante polo petroquímico. Mesmo em áreas altamente desenvolvidas, como a União Europeia, a poluição do ar é considerada o principal risco ambiental à saúde pública. As principais consequências são o aumento da incidência ou o agravamento de doenças respiratórias, como a asma. A poluição atmosférica pode também causar danos permanentes ao desenvolvimento pulmonar em crianças.
Eventos climáticos extremos, como ondas de calor, secas, inundações, furacões e incêndios florestais tornaram-se mais frequentes na última década. Tais fenômenos causam profundas disrupções à dinâmica das sociedades, com mortes traumáticas, danos à infraestrutura, migrações forçadas, fome e inquietações políticas. Devido à fragilidade fisiológica e à dependência em relação a adultos, características próprias da fase de desenvolvimento, crianças e adolescentes são mais suscetíveis às consequências físicas e psicológicas de tais eventos.
Grandes modificações na topografia do planeta resultaram das atividades de geração energética e extrativa, trazendo ameaças à saúde global.
No Brasil, o desmoronamento da barragem de rejeitos de mineração do Fundão, em Mariana, MG, em novembro 2015, causou diretamente a morte por soterramento de19 pessoas, sendo duas crianças. Os sedimentos espalharam-se por toda a bacia do Rio Doce. As consequências ambientais, com a contaminação do suprimento de água e dos alimentos por substâncias tóxicas, ainda não foram suficientemente avaliadas, e certamente terão amplas repercussões sanitárias. A experiência com a tragédia de Mariana não resultou em medidas preventivas eficientes. Nova tragédia ocorreu em janeiro de 2019, em Brumadinho, MG, com mais de 200 mortos. A morte de trabalhadores resultou em grande número de crianças e adolescentes órfãos, com efeitos danosos previsíveis e graves sobre sua saúde e bem-estar, em decorrência dos agravos psicológicos, sociais e econômicos.
Os resultados deletérios das intensas modificações promovidas pela humanidade na biosfera já estão presentes, com pesados custos materiais e humanos. No entanto, a resposta da humanidade a estes perigos tem sido ineficaz, oscilando entre a lentidão e o negacionismo, influenciada por visões nacionalistas e econômicas de curto prazo. As simulações baseadas em modelos cientificamente sólidos devem servir de alerta aos gestores de saúde pública. Nossas crianças e adolescentes herdarão um planeta com um ambiente físico muito diferente daquele conhecido pela humanidade durante toda a sua história. Uma biosfera extremamente modificada e potencialmente hostil, podendo vir a caracterizar, nas palavras do escritor norte-americano David Wallace-Wells, uma “Terra inabitável”.
Marcos Tadeu Nolasco da Silva é professor do Departamento de Pediatria da FCM, coordenador do Centro de Investigação em Pediatria (Ciped) e membro do Núcleo de Estudos e Pesquisas Ambientais (Nepam) da Unicamp