Boletim FCM

 

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ISSN: 2595-9050
 

Dino, prova gli spaghetti enquanto eu conto…

Data de publicação
07 nov 2018

   

dinner
Josefa de Óbidos, doces e flores. Séc. XVII, 2.ª metade

     — Dino, vieni a mangiare, disse Francesca, que acabara de servir o almoço. Seu marido, o doutor Bernardino Ramazzini, a quem ela carinhosamente chamava Dino, se demorava no jardim, entabulando conversa com o limpador de cloaca ou limpa fossa.

     — Arrivo subito, Francesca… Stavo parlando com o cloaqueiro. Ele conversou com você?, disse Ramazzini enquanto puxava a cadeira e se acomodava para a refeição.

     — Sì, Dino, eu conversei com ele… Vamos almoçar e eu te conto. Hai portato il vino?

     — … Ele me disse que os olhos estão ardendo. O que você conversou com ele?, perguntou Ramazzini.

     — Dino, prova gli spaghetti enquanto eu conto… Fui oferecer um bicchiere d’acqua ao cloaqueiro e percebi que ele trabalhava muito apressadamente, açodadamente, ansioso por terminar. Eu disse a ele que poderia realizar sua tarefa com mais calma, não tão rápido para que não se cansasse demasiadamente, com o excessivo esforço. Mas ele explicou que não podia ficar muito tempo perto da fossa porque os olhos começam a arder muito. Me disse que “Ninguém que não tenha experimentado poderá imaginar quanto custaria permanecer neste lugar durante mais de quatro horas, pois ficaria cego".

     — Francesa, gli spaghetti sono deliziosi… Você acha mesmo que esse problema dos olhos está relacionado com o trabalho de limpador de cloacas? Esta cidade, por sua extensão, é bastante populosa e tem suas casas apinhadas e muito altas. É costume esvaziar de três em três anos as cloacas de cada uma das casas. Portanto, os limpadores ou desinfetadores de cloacas, cujo mister é tão útil a todas as cidades, devem ser amparados também pela arte médica, visto que as leis civis já trataram de proibir que se faça violência a eles. No passado, nos tempos de Trajano, esse vil mister foi incluído na condição de castigo, pois os mais velhos condenados a mais de dez anos, eram destinados à limpeza de balneários ou das cloacas. Mas hoje… Ramazzini interrompeu sua fala enquanto se servia de mais um bicchiere di vino rosso.

     — Dino, você reparou que os olhos do cloaqueiro estão bastante inflamados e enevoados? Ele disse que tão logo volta para casa fecha-se em um quarto escuro, permanecendo até o dia seguinte, e banha constantemente os olhos com água morna, como único meio de aliviar a dor dos olhos. Você não acha que deveria investigar melhor essas afecções dos olhos dos cloaqueiros? Acho que se trata de um problema muito sério, pois muitos deles chegam a ficar cegos, como aqueles dois mendigos que pedem dinheiro em frente à igreja da praça.

     — Hai ragione, Francesca. Vou fazer isso; conversar e examinar os limpadores de cloaca de la nostra città. Certamente alguns ficarão irritados porque vou me deter muito tempo tratando de assuntos de cloacas; porém não há tema cuja atenção macule o investigador das coisas naturais e, muito menos, o professor de arte médica. Em seguida, vou observar outras artes, pois é forçoso confessar que podem ocasionar não pouco dano aos artesãos, certos ofícios que eles desempenham, onde esperavam obter recursos para a sua própria manutenção e de sua família, podem encontrar graves doenças e passar a amaldiçoar a arte à qual se dedicam, afastando-os do mundo dos vivos… Nesse momento, Ramazzini levantou os olhos como se já estivesse cogitando quais artífices iria estudar: mineiros, douradores, massagistas, químicos, oleiros, estanhadores, vidraceiros etc.

     — Mio caro Dino, sono fiera di te. Você poderia até escrever um tratado sobre as doenças dos operários. E recomendar que os médicos, ao conversarem com seus pacientes, incluam a pergunta “e que arte exerce?”. O que você acha?… Francesca também elevara os olhos como que sonhando com o futuro.

     — Ottima idea. Grazie mille. Ti amo così tanto, emendou um Ramazzini apaixonado.


rubensRubens Bedrikow é clínico geral e especialista em Medicina de Família e Comunidade e médico contratado do Departamento de Saúde Coletiva da FCM. Desde 2012, exerce atividades de ensino em módulos do primeiro, quarto e quinto anos e como preceptor de residentes de Medicina da Família e Comunidade e Saúde Coletiva da faculdade. Em 2017, foi chamado pelos alunos para ajudar a criar a Liga de Saúde da Família e foi aprovado no concurso de professor da área de Medicina de Família e Comunidade.


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