Em 17 de setembro de 1179, no silêncio do convento de Rupertsberg, falecia a abadessa Hildegarda de Bingen. Tinha 81 anos e sua extensa e laboriosa vida correu quase todo o século XII em múltiplas atividades: teóloga, naturalista, terapeuta, compositora, pregadora, musicista, poeta e dramaturga, superando os limites de sua saúde frágil desde a infância. Seu último ano de vida foi amargurado com a interdição a seu mosteiro de celebrar missa e cânticos sacros, por supostamente ter afrontado uma regra eclesiástica. Seu túmulo tornou-se centro de peregrinações de milhares de fiéis que a consideravam santa. Todavia, sua santidade só foi oficializada em 2012 pelo seu conterrâneo papa Bento XVI, que também a nomeou “doutora da Igreja”.
O mais surpreendente aspecto é sua particular cosmologia, que integra o homem à natureza e a Deus, superando a dicotomia corpo-alma que balizava a Igreja Católica desde Santo Agostinho. E mais surpreendente ainda, a valorização da mulher, negando a traição de Eva e considerando homem e mulher interligados, um produto do outro. O próprio Deus foi descrito muitas vezes como uma mãe amamentando a Criação e velando por sua progênie. Essa interpretação não significou um confronto direto com a ortodoxia dogmática do Cristianismo; ela manteve um conservadorismo em tudo o que era essencial.
Como naturalista, descreveu minuciosamente inúmeras plantas medicinais e nutritivas. Denominava viriditas a força vital, o frescor da vida, a constante vitalidade, expressa no verde da vegetação, que contrapõe à ariditas, a aridez que, segundo afirma, advém da vingança de Deus, em função da “traição” ou separação em relação a Ele.
Propunha métodos de cura natural com inúmeras plantas, a prática regular do jejum e orientações higiênico-dietéticas, registrados em dois volumes: Physica (Liber simplicis medicinae) e Causae et curae (Liber compositae medicinae). Considerava as doenças consequências do pecado original, da perda da harmonia e moderação primitivas e da desintegração entre Criador, natureza e criatura. “Saúde é harmonia entre corpo, alma e espírito”, dizia Hildegarda de Bingen.
Resumia sua terapêutica em “Cinco Pilares”: Nutrir a alma; Nutrir o corpo; Viver saudavelmente (exercícios, vida ao ar livre, bons hábitos, amizades, família); Reforçar a imunidade (elixires, repouso, evitar produtos químicos, vinho, shitake); e Desintoxicação regular (limpeza intestinal, jejum, calêndula, sangrias e ventosas).
Às suas receitas terapêuticas denominava “Maravilhas do Senhor”, dizendo-se inspirada diretamente pelo Criador. Seus “alimentos da alegria” eram o funcho, o espelta (um tipo de trigo antigo), castanhas, marmelo, amêndoas e muitas especiarias como a canela, a noz moscada, o tomilho e o cravo da índia os quais preconizava consumir regularmente – alimentos ricos em vitamina B12 e magnésio.
O jejum era mais uma dieta revitalizante e desintoxicante praticada por duas ou três semanas. Consistia basicamente de uma sopa de espelta e legumes, condimentada com tomilho, camomila e galanga ao meio-dia, chás e sucos de frutas pela manhã e à noite. A utilidade terapêutica do jejum tem sido confirmada em inúmeras comunicações científicas atuais.
Apregoava que todo excesso alimentar intoxica o organismo e produz tristeza. “A alegria está na sobriedade e pureza da alma e dos nutrientes”, dizia. Cada alimento era mais ou menos aconselhado segundo o estado de saúde, classificados em quente, frio, seco ou úmido, e ainda, se bom para todos, só para sadios, só para os doentes ou nem para sadios nem para doentes, sempre atribuindo o resultado da intervenção terapêutica à vontade divina.
Segundo especialistas, demonstrava conhecer Hipócrates e Galeno, as práticas árabes, as obras de Plínio, o Velho e Isidoro de Sevilha, a teorias dos temperamentos, dos fluidos corporais e dos humores, e também princípios da medicina chinesa. Entretanto, fez muitas observações originais e inventou diversas terapias novas. Algumas das práticas terapêuticas que descreveu têm interesse apenas histórico, mas outras foram confirmadas pela ciência e são empregadas largamente, ainda hoje.
Não se sabe como adquiriu esse conhecimento; sua atividade como médica foi toda informal e provavelmente autodidata. O estudo e a prática da medicina eram vedados às mulheres. Pode ter recebido uma base terapêutica prática com a superiora e os monges durante seu noviciado. Os beneditinos têm por lema Ora e labora e se caracterizam pela dedicação ao conhecimento e a assistência aos doentes.
Com franqueza inédita para sua época, abordou a sexualidade e suas disfunções. Via o ato sexual e o prazer positivamente, comparando-os à música e o corpo humano a um instrumento musical, mas condenava a luxúria com veemência. Em Causas e curas a sexualidade é largamente desenvolvida e ligada à noção de equilíbrio e saúde. Recusava a ideia que o prazer feminino não é necessário e seja ocasional. “O prazer e o coito não permitem somente a reprodução, são condições indispensáveis para que o homem e a mulher se tornem inteiros”, considerava.
Em suas frequentes e tormentosas crises de enxaqueca tinha incríveis visões, as quais descrevia minuciosamente ao seu secretário, o monge Volmar, que as traduzia em desenhos de intenso conteúdo simbólico e teológico. Musicista inspirada, compôs em torno de 70 peças, e produziu um salto evolutivo no canto gregoriano. Para ela, que tinha uma bela voz, a música, especialmente o canto, era o encontro com o divino e servia à evangelização, à terapêutica e à elevação espiritual.
Sua obra permaneceu obscura ao grande público até a metade do século XX, quando foi redescoberta por Wighard Strehlow e Gottfried Hertzka. Atualmente, grupos dedicados a estudos de sua medicina natural e teologia se reúnem na Alemanha e na França, com curso na Sorbonne e congressos anuais, bem como na Bélgica, na Espanha, Argentina e outros, onde existem clínicas especializadas realizando tratamentos segundo suas orientações.
Clarissa W Mendes Nogueira, professora aposentada do Departamento de Tocoginecologia e membro do Grupo de Estudos História das Ciências da Saúde da FCM